Título: A indispensável reforma da ONU
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2004, Opinião, p. A13

As Nações Unidas são uma organização frustrante e, com freqüência, irritante. Em suas muitas e distintas facetas, a ONU pode ser indecisa, ineficiente, lenta na ação e burocrática. Quando crises clamam por soluções simples, as engrenagens da diplomacia internacional movem-se com desesperadora lentidão e, em decorrência disso, pessoas morrem. A realidade - soluções simples para conflitos complexos são raramente disponíveis ou eficazes - é de difícil aceitação. A tragédia humana em Darfur é um exemplo clássico. De acordo com o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, quase 2,3 milhões de pessoas vivem a urgente necessidade de ajuda humanitária na província ocidental do Sudão e "paira uma ameaça de caos, com o colapso da ordem". Esse é o problema, mas onde está a solução? O Conselho de Segurança da ONU vive um impasse diante da decisão de impor sanções ao Sudão - um caminho que, de todo modo, dificilmente melhoraria a sorte de 2,3 milhões de pessoas. A proteção da população civil está sendo deixada aos cuidados dos empobrecidos países-membros da União Africana. Não são apenas as estridentes fileiras de conservadores americanos que têm condições de criticar a ONU. Mas eles desfecharam uma caça às bruxas em Washington - para farejar corrupção nas fileiras da burocracia da ONU, envolvendo os contratos de troca de petróleo por alimentos no Iraque - que parece ter perdido todo o contato com a realidade. Eles parecem pretender, a todo custo, destruir a organização e forçar a renúncia de Annan, em vez de contribuir para um debate coerente sobre a modernização da organização. No início do mês, foi publicado um relatório, irrepreensivelmente sensato, produzido por uma comissão de notáveis formada por Annan, propondo uma reforma da ONU. O relatório oferece 101 recomendações, entre elas, mudanças institucionais - provavelmente um número tão grande, que apenas as almas mais dedicadas conseguirão digerir. Algumas partes do sistema seriam descartadas, outras reforçadas, para uma concentração em prevenção de conflitos e reconstrução de Estados em colapso. Igualmente importante, o relatório analisa de maneira sistemática todas as ameaças à segurança nacional, internacional e individual que uma organização como a ONU deveria procurar atacar ou, ainda melhor, prevenir. O relatório também propõe uma definição de terrorismo, que ajudaria todos os países a somar forças para combater o flagelo, e define regras claras para determinar quando poderia ser justificado o emprego de "força preventiva" para evitar uma ameaça iminente, para que não nos envolvêssemos em outra "debacle" do tipo iraquiano. O estudo não foi concebido exclusivamente para persuadir os EUA da importância e relevância do sistema da ONU, mas essa é, possivelmente, sua tarefa mais importante. As cisões internacionais em relação à guerra no Iraque levaram ao auge uma desconfiança em relação à ONU que há muito se disseminava nos círculos políticos americanos. Entretanto, para que um sistema de segurança coletivo possa ser eficaz, a única superpotência precisa estar envolvida. A comissão deu-se ao trabalho de abordar as preocupações americanas. Quando a ONU foi concebida em 1945, o objetivo primordial era prevenir outra guerra mundial, e os maiores riscos eram de conflitos entre nações-Estados. O relatório conclui que os riscos hoje são mais complexos: guerras civis, limpeza étnica dentro das fronteiras de países, terrorismo, proliferação de armas nucleares, biológicas e químicas, e crime organizado transnacional fazem, todos, parte do cenário. Igualmente preocupantes são as ameaças econômicas e sociais, entre elas pobreza, doenças e dano ao meio ambiente.

Conservadores americanos parecem pretender destruir a ONU, em vez de contribuir para um debate sobre a modernização da organização

A lista poderia ter sido escrita pelos assessores de segurança nacional de Bush, embora, nessa eventualidade, as ameaças econômicas e sociais pudessem ter recebido menor atenção. Mas a comissão vai além, enfatizando quão interconectados são todos esses aspectos, e como Estados em colapso - seja por guerra civil, pobreza ou mesmo, no futuro, por devastação de doenças como Aids - são um elemento crítico da insegurança mundial. A Al-Qaeda surgiu num país em colapso - o Afeganistão. O mais terrível genocídio no passado recente ocorreu em outro - Ruanda. A conclusão fundamental da comissão da ONU é de que, diante de tão complexo elenco de ameaças, nenhum país - sequer a superpotência mundial -, pode proteger-se adequadamente. Por mais imperfeito que seja o sistema, segurança coletiva é indispensável. As nações-Estados podem cooperar nas áreas de inteligência e repressão, mas regras internacionais são essenciais para enfrentar ameaças que não respeitam fronteiras nacionais. Isso pode parecer uma afirmação óbvia, para a maioria das pessoas. Pode parecer ainda mais evidente à luz dos fracassos das políticas americanas no Iraque. Mas há, evidentemente, um enorme trabalho de persuasão a ser feito em Washington. Dois fatores fazem disso uma tarefa particularmente difícil. Uma delas é que Bush não admitirá que estava errado em relação ao Iraque. A outra é que o campo dos conservadores está obcecado com o escândalo envolvendo o programa "petróleo por alimentos". Existe uma determinação visando expor a corrupção na burocracia da ONU, embora o programa tenha sido gerenciado por países-membros, inclusive EUA e Reino Unido, e não pela equipe de Annan. Qualquer sugestão de reforma positiva para a ONU é vista como tentativa de desviar a atenção. É improvável que aqueles empenhados seriamente em destruir a ONU se deixem persuadir. Mas já é hora de o presidente americano distanciar-se da caça às bruxas, em vez de incentivá-la tacitamente. Bush pode ainda estar furioso com Annan por ele ter ousado dizer que a guerra no Iraque era ilegal, e que o ataque contra Fallujah seria um erro, mas ele deve saber que está lhe escasseando inspiração sobre como estabilizar o país. O plano de reforma da ONU proporciona a Bush uma oportunidade ideal para um recomeço. Ele pode reivindicar crédito pelo foco realista em ameaças, ação preventiva e na definição de terrorismo. Ele não precisa admitir que estava errado. Mas ele precisa saber disso em seu íntimo.