Título: Prioridades da Europa pós-Powell
Autor: Quentin Peel
Fonte: Valor Econômico, 23/11/2004, Opinião, p. A11

A renúncia de Colin Powell ao cargo de secretário de Estado dos EUA dificilmente constituiu surpresa. Muitas pessoas que o encontraram nos meses recentes retrataram um homem que parecia cansado do posto e da interminável luta interna na administração de George W. Bush. Powell foi um bom soldado, que serviu lealmente ao seu comandante-em-chefe. Ele pode ter discordado das mais gritantes ações unilaterais do seu governo, porém ele não abandonaria o posto antes de cumprir o seu dever. Também foi o melhor amigo da Europa em Washington, embora aparentasse ter perdido a maior parte das batalhas travadas pela atenção do presidente para Dick Cheney, o vice-presidente, e para Donald Rumsfeld, no Pentágono. Não era segredo que batalhas foram travadas. Um visitante europeu de alto nível recordou uma longa reunião sobre o Oriente Médio, no Departamento de Estado, à qual Powell foi obrigado a deixar para conduzir mais conversações sobre o assunto na Casa Branca. "Obrigado pela munição", declarou, enquanto apertava mãos ao partir. Sua saída representa um mau augúrio para a Europa. Haverá menos solidariedade nos altos escalões para preocupações européias em assuntos importantes como a paz entre palestinos e israelenses e o comprometimento do Irã. A única notícia alvissareira é que, com Condoleezza Rice, a política externa dos EUA deverá ser mais coerente. Ela é absolutamente leal a Bush. Eles compartilham as mesmas idéias sobre a "guerra" contra o terror. Rice está herdando um ministério na defensiva. Os quatro anos passados testemunharam uma queda dramática no apoio aos EUA e suas políticas ao redor do mundo, especialmente na Europa e no Oriente Médio. Isso ficou evidente mesmo antes dos atentados terroristas de 11/9. A guerra no Iraque teve o efeito mais marcante sobre as pesquisas de opinião pública, porém ela já começava a demonstrar sinais do descontentamento que estava por vir quando Bush se recusou a assinar o tratado de Kyoto sobre aquecimento global, e quando se desfez unilateralmente do tratado de mísseis antibalísticos. Algumas pessoas consideraram a reação internacional um antiamericanismo, porém, na Europa, ela foi, na realidade, uma manifestação anti-Bush. As pesquisas de opinião mostraram eleitores estabelecendo uma clara distinção entre país e governo. O perigo decorrente do resultado da eleição é que a aversão ao presidente se transforme em um antiamericanismo mais geral. O resultado, contudo, não representou uma vitória esmagadora. Bush venceu por 51% a 48% do voto popular. Para um presidente em guerra, foi um endosso sem entusiasmo. Além disso, raramente se viu tal divisão em atitudes entre partidários e oponentes. Para as pessoas fora dos EUA, que continuam alarmadas com as políticas de Bush, não há motivo para responsabilizar a América como um todo. A vitória de Bush, no entanto, confirma a opinião na Europa de que a linha divisória transatlântica raramente foi tão ampla. Valores essenciais, como a crença na democracia, possivelmente são compartilhados, porém atitudes sociais, observância religiosa, a percepção de ameaça e prioridades para a ação internacional divergem acentuadamente.

A alternativa para a Otan como amálgama que una os dois lados do Atlântico deve ser o relacionamento entre Washington e Bruxelas

A pesquisa de opinião pública "Tendências Transatlânticas 2004", do Fundo Marshall Alemão, publicada em setembro, concluiu que "o apoio europeu a uma liderança americana vigorosa declinou consideravelmente ao longo dos dois anos passados". Ainda mais importante, americanos e europeus estão divididos em torno do uso da força: 82% dos americanos disseram que a guerra pode ser necessária algumas vezes para se alcançar "justiça", contra apenas 41% dos europeus. Nesse ponto reside a linha divisória nas atitudes em torno do Iraque e de qualquer intervenção militar futura. Em Roma, num fim de semana após as eleições americanas, o Instituto Aspen Itália foi o anfitrião de um seminário, no qual a maioria dos participantes parecia concordar em que as diferenças entre América e Europa são profundas e estruturais, não meramente uma fase. Eles também temiam que a principal instituição que une os dois lados - a Otan - estava moribunda e se extinguindo. "Depois de mais quatro anos de Bush, ainda restará alguma parceria atlântica?", perguntou Charles Kupchan, do Conselho sobre Relações Exteriores em Washington, ex-diretor para assuntos europeus no Conselho de Segurança Nacional, durante o governo de Bill Clinton. A Otan foi duramente enfraquecida em três frentes. Perdeu seu inimigo soviético e suas estruturas militares integradas estão completamente despreparadas para a "guerra" contra o terror. A ampliação promovida para absorver antigos membros do Pacto de Varsóvia tornou a organização pesada, e o comprometimento dos EUA para com as "coalizões dos voluntários" para as suas guerras minou a solidariedade da aliança. A alternativa para a Otan como amálgama institucional que una os dois lados do Atlântico deve ser o relacionamento entre Washington e Bruxelas: a parceria União Européia (UE) e EUA. Ela é relativamente robusta no que tange às relações comerciais, e está se tornando cada vez mais próxima em termos de política de concorrência - regulando fusões e monopólios. A estrutura geral, no entanto, continua débil. Encontros de cúpula semestrais entre os EUA e o país que preside a UE (atualmente a Holanda), acrescidos pela Comissão Européia, geralmente representam um estorvo por sua falta de conteúdo. Enquanto a UE carecer de uma política externa e de defesa comuns, este expediente provavelmente persistirá. Se a parceria transatlântica sobreviver à sua crise, será necessário criar uma nova estrutura de trabalho. Ela deve ser mais relaxada em relação à Otan, porém mais próxima em relação aos seus vínculos atuais. Michel Barnier, o ministro das Relações Exteriores francês, está conclamando para a realização de uma reavaliação deste gênero. Em Washington, o Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais está propondo um novo "Compacto Atlântico". O desejo de manter a antiga ordem viva, porém, prejudica as tentativas de criar uma nova. "Se não está quebrada, não a conserte", parece ser a visão dos governos do Reino Unido e dos EUA. Mas ela está quebrada. A cola antiga se dissolveu. Se não conseguirmos encontrar uma nova cola, a visão do presidente Jacques Chirac, de uma guinada "inevitável" rumo a um mundo multipolar, poderá se concretizar, apesar da tentativa de Tony Blair de manter o equilíbrio sobre um cabo nas alturas estendido sobre o Atlântico.