Título: A face nada nobre de uma tropa de elite
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 19/09/2010, Brasil, p. 12

Corregedoria da Força Nacional de Segurança, desde que foi instaurada, em 2007, abriu 297 processos que resultaram na expulsão de 76 agentes. Número é tão preocupante que os novos integrantes deverão reforçar a própria inspetoria

A primeira semana de aula dos 113 policiais civis que, numa ação inédita, começaram a capacitação para integrar a Força Nacional de Segurança Pública uma tropa de elite(1) mantida pelo governo federal até então apenas com agentes militares, federais e bombeiros marca uma preocupação com o trabalho investigativo. Mas o foco não se restringirá às operações externas. Os futuros integrantes também fortalecerão a inspetoria da corporação, uma espécie de corregedoria, que só este ano instaurou 49 procedimentos para apurar diversos desvios de conduta praticados pelos agentes. Desde 2007, quando o setor entrou em funcionamento, três anos depois de a própria Força ser criada, foram abertos 297 processos, resultando na expulsão de 76 agentes. Isso significa que em quatro investigações realizadas, uma termina em desligamento do policial.

O inspetor da Força Nacional, coronel Edson Costa Araújo, não detalhou os desvios de conduta que culminaram na expulsão dos agentes. Vão de deslizes leves relacionados ao nosso código de conduta a casos mais graves, como o de Luziânia. Parte significativa dos desligamentos deve-se ao não cumprimento das nossas regras, como falta ao trabalho, por exemplo, minimizou o coronel. De acordo com ele, os policiais civis que iniciaram o curso de formação esta semana serão importantes para incrementar a atuação da Força no campo da investigação. Embora o foco seja as operações externas, Araújo acredita na contribuição desses agentes para o seu setor. Certamente eles vão possibilitar uma atuação melhor da corregedoria, diz o inspetor, ressaltando que a polícia militar tem desempenhado a atividade com competência, uma vez que há setores semelhantes nas corporações da maioria dos estados.

Pacto As 76 expulsões em menos de quatro anos, segundo Araújo, mostram o quanto a conduta ética é importante para a Secretaria Nacional de Segurança Pública, à qual a Força está ligada. A atuação correcional é uma questão essencial para nós. Às vezes nem chega a ser crime, mas que desrespeita a ética, afirma o coronel. Depois de desligado, o agente se afasta definitivamente da Força. O governo federal não faz qualquer tipo de acompanhamento da situação dele no estado. O órgão de origem daquele profissional recebe o processo que foi aberto. Porém não temos competência para decidir sobre a vida funcional desses servidores. Isso feriria o pacto federativo, diz. O primeiro impacto da expulsão, portanto, se dá no bolso, já que as diárias pagas aos homens da tropa já chegaram a R$ 247 quando eles foram chamados para atuar nos Jogos Pan-Americanos no Rio, em 2007.

Gerenciamento Os dados de desligamento na Força Nacional são de difícil análise, segundo especialistas. Para Ignácio Cano, é preciso verificar o tamanho do contingente envolvido nas operações em que houve desvios de conduta e também que o governo federal informe quais foram os atos que desencadearam as expulsões. Traz, em última análise, ao menos a percepção de que a investigação existe, de que as pessoas estão sendo afastadas, afirma o especialista do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O coronel reformado da PM de São Paulo José Vicente da Silva, que também foi secretário nacional de Segurança Pública, ataca a própria Força Nacional em sua concepção. Não existe essa corporação na nossa Constituição entre as polícias listadas no artigo 144, portanto estamos diante de uma anomalia, critica Silva.

Segundo ele, a diferença de cultura e de formação dos agentes vindos de todos os cantos do país é um fator que potencializa o risco de desvios de conduta e embaraça a apuração dos casos. Fica extremamente difícil fazer um gerenciamento dessa corporação em momentos de crise, opina Silva. A Secretaria Nacional de Segurança Pública aposta no treinamento dos agentes, num centro de capacitação localizado em Goiânia, para criar a uniformidade necessária ao emprego dos policiais. Foi confirmada recentemente pelo Ministério da Justiça a utilização da tropa na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. As eleições, no entanto, não contarão com a Força Nacional.

1 - No meio da crise De acordo com dados do Ministério da Justiça, a Força Nacional de Segurança Pública mobilizou cerca de 7,7 mil policiais em seis anos de funcionamento para atender às necessidades emergenciais dos estados. A corporação é inspirada na Força de Paz das Nações Unidas (ONU). Para integrar a tropa, policiais e bombeiros são selecionados nos estados e precisam ser idôneos criminalmente. A capacitação envolve cursos sobre técnicas de tiro, controle de distúrbios civis, policiamento ostensivo, gerenciamento de crise e direitos humanos. Ao fim do curso, os agentes voltam para seus estados, mas podem ser mobilizados a qualquer momento para atuar em alguma situação delicada pelo país.

Memória Violência extrema

Um dos casos de violência de maior repercussão envolvendo a tropa de elite do governo federal ocorreu em Luziânia, cidade a 60km do Distrito Federal e onde os homens fazem o treinamento da Força Nacional, em outubro passado. Dois rapazes, um deles adolescente, foram abordados na porta de um bar por três policiais, que encontraram munições com um dos homens. Nesse momento, começaram a dar chutes e coronhadas nos garotos e colocaram-os na viatura identificada. Os agentes levaram os dois para um matagal fora da cidade, e ali começou a sessão de tortura.

Os rapazes foram obrigados a tirar toda a roupa e engatinhar no meio do mato. De acordo com o depoimento de um deles, os policiais insistiam em saber onde estava guardada a arma. Mas o homem respondia que só tinha a munição para entregar a uma outra pessoa, mas não portava arma alguma. Um agente, então, usou um pedaço de madeira para cometer violência sexual. O homem ainda teve o braço cortado com uma faca.

O adolescente este poupado da violência sexual não escapou dos xingamentos, dos socos e dos chutes, porém. Ele foi amarrado a uma árvore com um pedaço de pano e chegou a pensar que o amigo tinha sido assassinado, quando ouviu um disparo. Os agentes, que usavam o uniforme da Força, porém sem a identificação no bolso, foram embora, deixando os dois no local. Eles andaram cerca de um hora e foram direto para o hospital, com muitos hematomas no corpo. O caso foi apurado e, segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, os agentes acabaram expulsos. (RM)