Título: Generosidade de filantropos cria onda de doações recorde no mundo
Autor: BusinessWeek
Fonte: Valor Econômico, 23/11/2004, Empresas, p. B2

Warren Buffett é famoso por duas coisas. Primeiro, por acumular a segunda maior fortuna dos Estados Unidos como um dos mais talentosos investidores que o mundo já conheceu. Segundo, pela aversão em gastar uma única moeda desses US$ 41 bilhões em qualquer coisa que não seja estritamente necessária. Isso inclui a recusa em dar fortunas aos filhos, colecionar iates, ou ceder parcelas de sua riqueza para causas merecidas. Assim, pode parecer um paradoxo o fato de que o homem que é um dos maiores muquiranas dos Estados Unidos em vida, será um de seus maiores filantropos quando morrer. Essa realidade tornou-se evidente em julho, quando Susie, a mulher e musa altruísta de Buffett, morreu em decorrência de um derrame cerebral, aos 72 anos. Agora, a maior parte da participação de Susie na Berkshire Hathaway - US$ 2,5 bilhões - está sendo transferida para a fundação que ela e Warren dividiam. Trata-se de uma pequena operação em Omaha que apóia a escolha reprodutiva e a redução das armas nucleares, mas que até agora operou sob camadas de sigilo. O que se sabe é que a doação de Susie coloca Warren em terceiro lugar no terceiro ranking anual da "BusinessWeek" dos 50 maiores filantropos dos EUA, posição que no ano passado era a 26ª. (Para propósitos de classificação, a revista trata casais como uma entidade.) O legado de Susie Buffett é apenas um em um ano definido por doações surpreendentes. A onda de doações recordes sugere que pelo menos um pedaço dos ganhos vultosos obtidos durante o boom do mercado de ações no fim dos anos 90 está sendo canalizado de volta para a sociedade. Os outros membros do clube do US$ 1 bilhão do ano incluem os maiores doadores, Bill e Melinda Gates, que são os maiores doadores internacionais do mundo e fizeram história em 2004 ao doarem seu dividendo recebido da Microsoft, estimado em US$ 3 bilhões, para a fundação criada pelos dois. Trata-se de uma das maiores doações em vida já registradas. Colocando em perspectiva, essa doação é três vezes maior que o volume que os membros da família mais rica dos EUA, os descendentes de Sam Walton, o fundador da Wal-Mart, já distribuíram durante suas vidas, segundo o ranking da "BusinessWeek". Outros da lista contribuíram com doações na casa das centenas de milhões de dólares. O número 2 do ranking, Gordon Moore, co-fundador da Intel, e sua esposa Betty, prometeram US$ 275 milhões para pesquisas oceanográficas e a erradicação dos erros hospitalares. O novato da lista, e magnata dos equipamentos médicos, Alfred Mann, doou US$ 200 milhões para institutos de pesquisas médicas de Israel e para a Universidade Johns Hopkins. "O dinheiro só vale aquilo que você consegue fazer com ele", diz Mann, 78 anos e filho de um imigrante dono de mercearia. Ele ainda trabalha em período integral e pretende deixar toda a sua fortuna de US$ 1,4 bilhão para instituições de caridade. O ano das megadoações também viu uma série de donativos para universidades. O rei das importações de licor e nº 21 no Top 50 da "BusinessWeek", Sidney E. Frank, filho de um agricultor de Connecticut, dormiu em panos de saco até entrar na Brown University. Em setembro, ele doou à escola US$ 100 milhões para financiar bolsas de estudo para até 130 jovens por ano, cujas famílias não têm como pagar as mensalidades que somam US$ 31.000 ao ano, e os US$ 8.500 de estadia e alimentação. A doação foi inspirada na própria necessidade de Frank de deixar a universidade, por não poder arcar com as mensalidades. Esta foi a maior doação da história da Brown University e uma das maiores doações individuais na área de bolsas para bacharelado.

Os doadores avaliam que o valor de solucionar problemas hoje é maior do que deixar o dinheiro em testamento

Ao invés de acumular fortunas do tamanho de PIBs, muitos dos Top 50 ficaram mais extravagantes em seus atos de caridade em 2004, instados pela crença cada vez maior de que o valor de se resolver problemas hoje em dia é maior do que deixar o dinheiro em testamento quando eles morrerem. E ao acelerarem a doação de grandes somas, eles têm uma melhor chance de mudar alguma coisa. "A percepção é de que é preciso muito dinheiro para mover o dial", diz Paul Jansen, diretor da área de práticas sem fins lucrativos da McKinsey & Co. Na medida que essa crença se dissemina, especialistas afirmam que as fileiras dos megadoadores certamente vão crescer, especialmente com a maior transferência intergerações de riqueza da história se aproximando no horizonte. A estimativa é de pelo menos US$ 41 trilhões vão mudar de mãos até 2052 - dos quais US$ 6 trilhões devem ir para instituições de caridade, segundo John J. Havens e Paul. G. Schervish, do Boston College. Até mesmo os mais jovens do Top 50 estão participando da aceleração dessa tendência de megadoações. Michael e Susan Dell, 39 e 40 anos respectivamente, seguiram promessas de doarem quase US$ 300 milhões em 1999 e 2001, para causas envolvendo crianças. Ao longo de suas vidas, os 50 maiores doadores da lista da "BusinessWeek" já transferiram US$ 65 bilhões para causas de caridade, muitas delas ajudando a reduzir as desigualdades que ameaçam cada vez mais a sociedade, a estabilidade global e a paz mundial. O aumento da globalização e o clima político depois dos atentados terroristas aos EUA, têm levado alguns a direcionarem suas doações para outros países, uma tendência copiada do setor corporativo. (Embora as doações internacionais totais por doadores americanos ainda estejam em apenas 2%.). "Há uma maior conscientização agora de que talvez houvesse mais segurança no mundo se mais pessoas tivessem mais acesso a meios de fazer mais dinheiro", diz Marlene Hess, diretora de serviços globais de filantropia do JP Morgan Private Bank. Esta é certamente a visão de Ted Turner. Apesar de perder mais de US$ 7 bilhões de sua fortuna no negócio mal feito da AOL Time Warner, o ex-magnata da mídia continua fazendo o bem com sua promessa de doação de US$ 1 bilhão para a Organização das Nações Unidas (ONU), distribuindo essa soma por 15 anos, ao invés de 10. Perturbado pelo fato de haver 30.000 ogivas nucleares em alerta, Turner vem concentrando seus esforços na redução de uma série de armas nucleares existentes e na prevenção da criação de novas. "Os problemas precisam ser resolvidos agora, não daqui 20 anos", diz Turner. "Se fizermos tudo certo, nos próximos 50 anos passaremos a viver num paraíso. Mas se não fizermos, poderemos viver num inferno." As megadoações também estão ajudando a tirar parte do fardo das fundações e outras instituições sem fins lucrativos, que viram seus donativos diminuírem durante a recessão. Esses problemas juntaram-se a profundos cortes nos gastos sociais pela administração Bush. Dado o enorme déficit federal, provavelmente não haverá nenhum aumento desses gastos da parte de Washington no curto prazo. Isso significa que continuará havendo uma grande pressão sobre os doadores individuais, especialmente sobre os super-filantropos. "A filantropia e todo o setor que não visa lucros enfrentam mais desafios do que em qualquer outro momento da memória recente", afirma Jeff Krehely, diretor assistente do National Committee for Responsive Philanthropy.

Os 50 maiores doadores do ranking da "BusinessWeek" já transferiram US$ 65 bi para causas de caridade

Para avaliar os novos nomes na lista deste ano e criar seu ranking geral, a "BusinessWeek" analisou registros públicos e conduziu inúmeras entrevistas com fundações comunitárias, especialistas em instituições sem fins lucrativos, bilionários, captadores de recursos e observadores de fortunas. Para se qualificarem para o Top 50, os filantropos precisaram ter doado (ou prometido doar) US$ 116 milhões nos últimos cinco anos - US$ 21 milhões a mais que o mínimo do ano passado. Os estreantes desse ano incluem Veronica Atkins, viúva do Dr. Robert C. Atkins, que prometeu doar sua fortuna de US$ 500 milhões para acabar com a "diobesidade" - diabetes e obesidade - epidêmica, e Oprah Winfrey, a primeira afro-americana e segunda "self-made woman" a entrar para a lista. A pesquisa deste ano da "BusinessWeek" trouxe à tona uma nova força em doações que poderá muito bem revolucionar a filantropia do mesmo jeito que a eBay revolucionou o comércio. Não surpreende que o fundador da eBay, Pierre Omidyar, seja a síntese dessa tendência. Ao invés de escolher uma causa e criar uma estratégia para atacá-la, sua filantropia adota uma abordagem de baixo para cima, permitindo aos indivíduos que determinem a visão e direção, da mesma maneira que a comunidade de usuários do site eBay. Ao fazerem grandes apostas em causas escolhidas, os megadoadores são um espelho para as fundações americanas, que vêm sendo atacadas por legisladores por distribuírem apenas 5% de seus ativos por ano, incluindo os custos administrativos. Isso permite a elas manterem seu "corpus", para que possam operar perpetuamente, mas os críticos afirmam que elas poderiam dar muito mais. Um estudo feito por Jansem e David Katz, da Mckinsey, concluiu que manter todo esse dinheiro inativo, ao invés de doá-lo agora, diminui em 50% o poder dessas instituições de resolverem os problemas. Ao doar virtualmente todos os seus patrimônios para caridade, e ao fazê-lo em vida, muitos dos Top 50 também entram em contraste com outros milionários. Em média, os 1% mais ricos - que detêm dois quintos da riqueza dos Estados Unidos - doam apenas 2% de suas rendas a cada ano, em comparação a 6% de famílias cujas rendas são bem menores. Um total de 20% dos patrimônios mais ricos não deixam absolutamente nada para caridade. Em contraste, o presidente do conselho da AMF Bowling, William Goodwin, e sua esposa Alice, doaram três quintos de sua fortuna para pesquisas de combate ao câncer e educação; os Moore doaram quase dois terços de sua fortuna para a conservação ambiental e a ciência; e o fundador da American Century Cos., James E. Stowers Jr., e sua esposa Virgínia, repassaram mais de dois terços de suas posses para o Stowers Institute de pesquisas médicas em Kansas City. Mesmo assim, esses exemplos individuais de generosidade não são suficientes para convencer a todos de que os ricos estão fazendo o suficiente. Isso não quer dizer que megadoações são sempre uma solução fácil. Se não forem bem planejadas e executadas, elas podem se transformar em fardos. Alguns filantropos impõem algumas condições difíceis de serem cumpridas pelas instituições de caridade. A doação de US$ 1,5 bilhão da falecida Joan Kroc para o Exército da Salvação, em fevereiro, deixou a organização em dificuldades. Absorver o dinheiro tem sido um desafio, especialmente porque Kroc exigiu que o dinheiro seja usado em construções e na operação parcial de até 30% de novos centros comunitários. Isso significa que nenhum centavo poderá ir para os 1.400 centros que já existem e necessitam de reformas. Às vezes é a instituição de caridade que impõe condições. Durante anos Mann tentou doar US$ 100 milhões para Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), para um instituto de pesquisas médicas. Mann diz que dois anos atrás, finalmente a UCLA aceitou, mas impôs tantas condições e cláusulas que o que começou como um contrato de 50 páginas passou para várias centenas. Megadoações também estavam na cabeça de Susie Buffett. Em maio, ela revelou em entrevista que discordava do marido a respeito da filantropia. Susie, que divertia-se em viajar por causas filantrópicas, queria doar uma parcela da riqueza dos dois já; Warren achava melhor se concentrar no aumento da fortuna para que uma soma maior pudesse ser deixada. Agora, após sua morte, a megadoação de Susie significa que seu desejo está sendo cumprido.