Título: Cristina negocia segurar salários para conter inflação
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 09/12/2011, Internacional, p. A13

O enfrentamento com o meio sindical, uma das mais tradicionais bases de apoio do peronismo na Argentina, deverá marcar o início do segundo mandato da presidente Cristina Kirchner, que começa sábado, em uma cerimônia que contará com a presença da presidente Dilma Rousseff, entre outros chefes de Estado.

Ainda neste mês o governo começa a discutir com os sindicatos dos professores os reajustes salariais para 2012. A negociação coletiva com o corpo docente abre um calendário de novos aumentos com as dez principais categorias de trabalhadores do país, como a dos caminhoneiros, dos metalúrgicos e dos empregados no comércio, que se estenderá até junho.

"Será o elemento decisivo para avaliarmos o que este governo quer. Se o reajuste para os docentes ficar abaixo de 20%, estará claro que haverá uma conjuntura de moderação do consumo e economia mais desaquecida em um cenário de crise externa", avaliou o economista Dante Sica, da consultoria Abeceb.

Se a previsão se confirmar, não será o primeiro sinal de movimento do governo argentino para uma ortodoxia econômica: logo após as eleições, começou uma política gradual de corte aos subsídios ao consumo de energia. As próprias autoridades argentinas já alertaram que a redução também deverá chegar aos subsídios para o transporte. O pagamento das subvenções ao consumo absorve cerca de 4% do PIB argentino, o mesmo percentual que o país gasta com políticas de transferência direta de renda.

A presidente já anunciou que colocará o combate à inflação como uma das prioridades de seu segundo mandato, e os dirigentes empresariais, com quem Cristina mantém interlocução quase diária, apontam o crescimento de salários como o maior fator para o aumento de custos. Em 2011, segundo cálculo da consultoria Analytica, o índice médio de reajustes em negociações coletivas foi de 31%, cerca de seis pontos acima do cálculo extraoficial da inflação.

Fazer com que no médio prazo a inflação real convirja com a oficial (que não passa de 9%) é estratégico para a Argentina voltar a ter acesso ao mercado financeiro internacional, espaço vedado desde a moratória unilateral de 2001. Na última reunião das autoridades econômicas com o FMI, em novembro, o país se comprometeu com a instituição de mudar o cálculo do índice até 2013.

A medição oficial da inflação na Argentina descolou da realidade em 2007, quando o governo fez uma intervenção no Indec, o órgão público encarregado de estatísticas. A inflação de apenas um dígito não serve hoje como parâmetro para nenhum contrato no país e distorce cálculos de outros indicadores, como crescimento do PIB, linha de pobreza, resultado primário e peso da dívida pública sobre a economia.

O novo ministro da Economia, Hernán Lorenzino, é o negociador da dívida externa argentina. O país tenta fazer a negociação de sua dívida soberana com o Clube de Paris, de US$ 9 bilhões, sem que haja um monitoramento de organismos multilaterais.

A agressividade entre o governo e as centrais sindicais é crescente e tende a se acirrar nas negociações coletivas. Há motivos estruturais para o embate: como não existe imposto sindical na Argentina, uma das principais fontes de financiamento das centrais é uma porcentagem sobre o que se consegue em negociações coletivas. E os acordos por categoria valem para todo o país, o que aumenta o poder das centrais.

"Se o governo operar para reduzir os reajustes, estará diminuindo diretamente o fluxo de dinheiro para os sindicatos", comentou Ruben Cortina, o secretário internacional da Federação dos Trabalhadores do Comércio, um sindicalista próximo do oficialismo e distante de Hugo Moyano, presidente da CGT.

De acordo com Cortina, a questão é um complicador em um momento em que há uma disputa de poder dentro do sindicalismo. O mandato de Moyano à frente da CGT termina em julho de 2012, depois das negociações coletivas mais importantes. "Cristina está muito popular, e não há interesse das centrais em desestabilizar o governo, mas, em um ambiente de disputa dentro do sindicalismo, não se pode sustentar que os aumentos salariais são causa, e não efeito da inflação", afirmou. Moyano disputa o mando da central com a cúpula dos sindicatos mais poderosos do país, conhecidos como "os gordos".