Título: Genoino faz mea-culpa na boca da urna
Autor: Felício, César
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2006, Eu & Final de Semana, p. 4

Coube ao ex-deputado federal José Genoino Neto ser o primeiro integrante do Partido dos Trabalhadores a publicar em livro sua versão da crise política do ano passado, que destruiu a imagem do partido como centro de inovação da prática política no país. O depoimento está em "Entre o Sonho e o Poder" (Geração Editorial, 200 págs., R$ 29,90), editado pela cientista política e jornalista Denise Paraná.

Genoino é candidato a deputado federal e faz "dobradinha", ou seja, campanha conjunta, com 36 candidatos a deputado estadual do partido. Ao promover uma autocrítica, o livro se torna um instrumento em sua estratégia de recompor laços com a militância de base no partido. Do seu período de dois anos e meio como presidente do Partido dos Trabalhadores, Genoino não traz fatos novos ao comentar o episódio que forçou sua saída do comando da sigla: a divulgação dos empréstimos bancários para o PT, que assinou como avalista solidário, junto com publicitário mineiro Marcos Valério.

Denunciado pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, como integrante de uma quadrilha, junto com outras 39 pessoas, Genoino alega inocência, dentro da linha já exposta em depoimentos públicos e entrevistas no calor da crise: afirma que os empréstimos estão registrados na contabilidade do partido e têm natureza legal.

O núcleo central do livro é a revisão do comportamento do partido nos dois primeiros anos do governo Lula. Genoino traça o retrato de uma legenda que se isolou da base, mergulhando em acertos de cúpula com seus aliados na eleição municipal de 2004. Afirma que o PT deixou de lutar por mudanças na forma de se fazer política no Brasil, adaptando-se às circunstâncias e confundindo-se com as demais agremiações.

O reconhecimento das culpas tem endereço certo: os movimentos sociais ligados ao partido, como o Movimento dos Sem-Terra (MST), grandes críticos da gestão de Genoino à frente do partido, escanteados do núcleo de decisão durante os dez anos de hegemonia do chamado "Campo Majoritário" dentro do PT.

Genoino tenta voltar ao primeiro plano da política discursando para o público interno e buscando um reatamento com as fontes tradicionais do PT. Em uma das suas hoje raras intervenções para o público externo , concedeu esta entrevista ao Valor.

Valor: O senhor coloca no livro que a esquerda perdeu os valores de solidariedade, comparando os dias de hoje com os de 1968. São suas palavras, na página 44: "Nos piores momentos, a gente se unia (...) sempre havia divergências, mas quando acontecia, e às vezes tinha prisão e tinha tiro, ninguém ficava culpando o outro". É uma crítica em relação ao comportamento da esquerda na crise do ano passado?

Roosevelt Cassio/Folha Imagem José Genoino e Angela Gudagnin, em 2001, participam de ato contra a tentativa de o governo Fernando Henrique Cardoso impedir a CPI da corrupção José Genoino: Quem foi mais firme na solidariedade política foi exatamente o movimento popular e sindical, e alguns movimentos, inclusive, com quem o PT tinha divergência, como o MST. Eu me refiro a alguns companheiros, que não vou nominar, que ficaram muito na defensiva, diante de uma crise que tinha como pano de fundo a batalha política de extrema radicalidade feita pela oposição - não era um jogo neutro. O Roberto Jefferson cunhou uma expressão, o mensalão, a grande imprensa adotou, sem buscar provas, e faltou um enfrentamento. No livro, cito o caso do José Dirceu no movimento estudantil. Havia muita divisão sobre se o Congresso da UNE em 1968 deveria ser em Ibiúna (SP) ou não. Quando o Congresso caiu, a gente não foi dizer: "Quem é o culpado"? Todo mundo se uniu e disse: "A UNE somos nós". No momento mais agudo da crise de agora, não teve enfrentamento. E em Ibiúna fomos presos.

Valor: O senhor faz uma dura autocrítica, ao escrever, na página 186: "Cometi uma série de erros. Privilegiei as tarefas de representação política em momentos nos quais a presidência do partido me exigia decisões rápidas. Não enfrentei nossa tendência à burocratização (...) e não diminuí o peso das personalidades sobre o coletivo". Que conseqüências políticas vê nesses erros?

Genoino Nos últimos anos, embalei uma maneira de fazer política que, de certo modo, alguns valores históricos da esquerda, como solidariedade e combatividade, contribuíram para tirar um pouco da pauta. Eu me embalei muito na roda-viva do institucional e da presença na mídia. Falava muito com a militância por meio da mídia. Falava para fora e não para dentro. Até me surpreendeu o carinho que o PT está tendo comigo. O PT cresceu e as lideranças cresceram mais. Os diretórios, as executivas, ficaram fracos diante do peso das lideranças. Um partido não vive sem lideranças, mas não pode dar tanta autonomia. Eu devia ter cuidado mais do partido. Ter ficado menos em Brasília, ter cuidado mais da relação com os movimentos sociais, porque, na hora do vamos ver, os movimentos sociais foram muito corretos com o PT. Foram para a luta. Eu me refiro ao MST.

Valor: O PT esteve próximo de virar um partido como os outros?

Genoino: O PT tem uma base social militante que nenhum partido tem. O que aconteceu é que separou essa base militante da vertente política. Não fizemos uma mudança nas regras da política institucional e acabamos nos confundindo com a paisagem, por falta de uma reforma política. O PT deveria ter uma campanha pela reforma política, independente do governo.

Valor: O PT não adotou um comportamento maquiavélico clássico, abdicando de qualquer prurido para obter o poder, ao recorrer aos famosos "recursos não contabilizados"?

Genoino: Como não mudamos as instituições políticas, participamos de um sistema com os velhos procedimentos. Na eleição de 2004, houve a diminuição do peso da militância, o predomínio dos shows, a despolitização do marketing, tudo isso foram equívocos nossos nessa eleição específica. A campanha de 2002 foi uma campanha modesta, baseada na televisão. As instituições do Estado são moldadas por procedimentos nacionais. Como não mudamos os procedimentos, corremos riscos.

Valor: Ou seja, em vez de o PT mudar as instituições, foram as instituições que mudaram o partido.

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Genoino: Não diria tanto assim. Acho que, como não fizemos enfrentamento para mudar as instituições, acabou predominando um certo adaptacionismo nas eleições de 2004. Aquelas eram eleições municipais que tratamos como se fosse uma eleição nacional. O partido se endividou muito.

Valor: O fato de o PT ter feito essa opção preferencial pela política institucional não deixou o partido sem capacidade de mobilizar suas bases no momento mais agudo da crise?

Genoino: Seria muito difícil fazer um chamamento às ruas. Primeiro, porque o partido se distanciou dos movimentos sociais. Segundo, porque é muito difícil fazer política sem uma comunicação interna azeitada. O processo de enfrentamento foi o possível, dentro das circunstâncias.

Valor: O senhor faz em seu livro uma crítica genérica ao governo, afirmando que faltou ousadia ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci...

Genoino: [interrompendo] Nunca defendi medidas diferentes das que Palocci adotou na economia. O que eu conversava com ele era sobre a necessidade de sinalizar um projeto a longo prazo em seu discurso. Vincular as medidas necessárias com o longo prazo, para o crescimento e a distribuição de renda. Faltou isso no discurso e não nas medidas.

Valor: Mas o senhor coloca, na página 170, que o bom resultado nas eleições de 2004 era importante para fazer o governo guinar à esquerda . Havia, portanto, um embate interno no partido, para disputar o comando do governo?

Genoino: Nós começamos 2004 em uma situação muito difícil. Houve duas notícias muito ruins sobre juros e crescimento. Na medida em que tivéssemos uma vitória expressiva em 2004, conseguiríamos margem para ação, mas o fato de ter perdido em São Paulo e Porto Alegre nos enfraqueceu politicamente. Um grande empresário de São Paulo, que não vou citar o nome, me disse: "Vocês não podem ter vitória muito grande, se não o PT se anima muito para pressionar o Lula". Mas não era uma disputa pela hegemonia do governo, era uma questão de obter mais autonomia para o partido. Na eleição para a presidência da Câmara, em 2005, a gente já sentiu a necessidade de uma agenda própria para a Câmara e uma ligação com a nossa base social histórica. O PT não disputava espaço no governo, apostava no governo de coalizão. O governo é mais amplo do que o PT.

Valor: O senhor lamenta o fato de o PT não se ter empenhado numa aliança com o PSDB. É possível um reencontro em eleições futuras?

Genoino: A história resolveu essa contenda. A oportunidade histórica foi em 1993 e eu defendi que houvesse essa aliança, com o Lula candidato a presidente da República. Ali, tinha liga. Qual foi o problema? Aquela aliança tinha que ter Lula como candidato a presidente, porque liderava as pesquisas, e o PSDB queria ser protagonista. Com a derrota do Parlamentarismo no plebiscito, em abril de 1993, a situação ficou muito difícil. Depois o PFL convidou o PSDB para fornecer o candidato antiLula.

Valor: Com o que está colocado pelas pesquisas para a eleição deste ano, para onde o senhor acha que vão o PT e o PSDB?

Genoino: Não quero nem avaliar. Dependerá de como a oposição vai se colocar, porque ela adotou a tática da criminalização, uma tática extremamente sectária. Teremos ainda que avaliar o resultado das eleições como um todo.

Valor: O senhor critica o modelo de transição adotado pelo PT e pelo PSDB em 2002 como muito amistoso. O senhor acha que o PT deveria ter promovido uma espécie de devassa em relação à administração passada?

Genoino: Avalio isso em função da maneira como a oposição foi para o ataque ao governo. O PT poderia ter situado melhor a realidade que herdou do país.

Valor: Mas a oposição, em 2003, não referendou a política econômica do governo e apoiou as reformas constitucionais?

Genoino: Não. Quando o Serra assumiu a presidência do PSDB, o primeiro discurso dele foi de uma radicalidade fora do normal, atacando o PT. Ele dizia que não tinha que ter diálogo. Depois veio o episódio do Waldomiro Diniz e aí a radicalização foi muito pesada. A oposição não se expôs para negociar com o governo, como uma ala do PT fez em 1995 ao negociar com o governo Fernando Henrique.