Título: O dinheiro sobe ao palco
Autor: Félix, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2006, Eu & Final de Semana, p. 14

O repertório da dramaturgia brasileira é parcimonioso com o dinheiro. Embora o Brasil seja um país com uma história marcada pela corrupção - ou seja, a ganância - e as turbulências na política econômica (desde a sua formação capitalista até a sobrevivência no altar dos deuses do G-8), os autores brasileiros nunca dedicaram grande espaço ao tema na cena nacional. Claro, sempre haverá quem levante a tese de que, ao retratar o indivíduo em diversas situações de conflito ou penúria em sua vida cotidiana, o teatro está falando do dinheiro. Mas o fato é que a relação direta com o dinheiro tem despertado pouco interesse dos autores brasileiros.

As citações que vêm logo à lembrança são honrosas exceções para confirmar a regra, como "A Moratória", de Jorge Andrade (1922-1984) ou "A Torre em Concurso", de Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882). Estas, porém, muito mais voltadas para a economia ou a cultura do que para o trato com o dinheiro. Salvo comédias recentes sobre políticos corruptos ou outras caricaturas políticas, no bom sentido, escritas por Juca de Oliveira ("Meno Male" ou "Caixa 2"), Marcos Caruso ("Porca Miséria") ou até João Bethencourt ("Bonifácio Bilhões") não há quase nada. Uma leitura dos livros do crítico Sábato Magaldi "Panorama do Teatro Brasileiro" (Ed. Global) e "Moderna Dramaturgia Brasileira" (Ed. Perspectiva) confirma que a relação do indivíduo com o dinheiro nunca foi uma temática de primeiro interesse para os dramaturgos brasileiros - embora as telenovelas a explorem de forma contumaz.

Outro título que pode marcar a lista de exceções é o clássico "O Santo e a Porca", de Ariano Suassuna, este sim um texto sobre o efeito do chamado vil metal nas relações humanas. Ou, se preferir o leitor, como o dinheiro é exigente, a ponto de apodrecer mesmo no conforto de um bom esconderijo, onde supostamente era tratado com todo o carinho. Suassuna mostra que o dinheiro quer é devoção.

O avarento e o hedonista

Divulgação Renato Borghi, como Timão: cortejado na fortuna, abandonado na desventura, vítima de si mesmo, um gastador do que tinha e que não tinha, sempre à procura de aceitação por seus bajuladores No entanto, quando o tema é palpitante e está na frente de todos, sempre ganha a ribalta, independentemente da vontade dos novos autores. É isto que acontece agora, quando o dinheiro sobe ao palco com as montagens simultâneas, em São Paulo, de dois clássicos, "O Avarento", de Molière (1622-1673), e "Timão de Atenas", de William Shakespeare (1564-1616), textos que mostram há séculos o que o dinheiro pode e não pode comprar. As duas montagens, elogiadas pela crítica, colocam, respectivamente, os atores Paulo Autran e Renato Borghi encarnando personagens exemplares de histórias da difícil relação do homem com os valores materiais e o papel do dinheiro em nossa existência.

"Timão" foi a última tragédia do bardo inglês. É um texto considerado inacabado, escrito entre 1608 e 1609, mas obrigatório para quem, hoje, lida com o dinheiro - seu ou de outro. Traz numerosas lições para os gestores de "private banking", administradores de fortunas, porque Timão ouve a todos no seu período de bonança, menos seu gerente financeiro, que era, naquela Atenas, o mordomo. "É pena ser tão cega a mão aberta para não ter o infeliz a dor que é certa", diz o criado para si mesmo quando vê o patrão surdo a seus apelos e benevolente com jantares, festas e presentes para os amigos. Timão introduziu a hoje badalada psicologia do dinheiro.

Até o personagem Apemantus, o filósofo, com toda sua arrogância, prepotência e acidez, é ouvido sempre, mesmo que apenas para alimentar a discordância. O mordomo, nem isso. Timão só o escuta quando está na mais profunda inadimplência, resultado de seu hedonismo. Não é mera coincidência a semelhança com o exército de orientadores financeiros que pregam planejamento de gastos em rádio, jornais e televisões e a multidão de inadimplentes verificada atualmente no Brasil. É disso que Shakespeare fala.

O tema principal de Timão é a misantropia. Ele abandona a humanidade depois de ser repelido por amigos que ajudou na fortuna e lhe negaram gratidão quando ele vai à bancarrota. Mas o que queria Timão? A bajulação pura e simples de todos que o cercavam em Atenas. Novamente, um sentimento bastante semelhante com o de consumidores que, vivendo na sociedade de consumo, "precisam" consumir "agora" um determinado produto, signo de status, que abrirá as portas para a bajulação da sociedade contemporânea ou de determinado grupo social no qual não são aceitos sem a apresentação desses passaportes e, por eles, gastam o que não podem e entram em dívidas.

"Hoje as pessoas vão a um restaurante, comem um pedacinho de carne, enfeitado com alface, uma pimenta rosa e um aspargo, e pagam uma fortuna. Para quê? Para se encontrarem entre elas. É a fraternidade milionária, de casta, como na casa de Timão", compara Renato Borghi, que levou muitos anos sonhando em encenar o texto. "É uma peça tão atual que as pessoas não acreditam que tenha sido escrita por Shakespeare. Acham o tempo todo que estou improvisando, colocando cacos", diz o ator.

Enquanto Timão fere as relações pessoais por causa de sua "exuberância irracional", Harpagon, o personagem de Molière, corrói qualquer sentimento humano à sua volta com a avareza. É o outro extremo. Molière buscou inspiração em Plauto e Ben Jonson para dizer ao mundo que, se por um lado, como afirmou Shakespeare, "a casa muito farta um dia fecha", por outro, a cobiça pode, da mesma maneira, arruinar o indivíduo. O avarento acaba por ser derrotado quando a moça por ele desejada casa-se com o filho a quem injuriou, embora sua dor seja levemente atenuada pelo pensamento de que sua filha, que estava prestes a fugir de casa com o namorado, vai casar-se "sem dote".

Harpagon é uma caricatura e torna-se ainda mais cômico quando rouba aveia de seus cavalos ou quando sua aversão constitucional à palavra "dar" obriga-o a usar a saudação "eu lhe empresto um bom-dia". A crítica Bárbara Heliodora observa que, por mais risível que Harpagon possa ser, há uma carga de seriedade, de repúdio profundo a mais esse exemplo de desrespeito aos valores humanos, sem dúvida responsáveis pelo fato de a obra de Molière ser - merecidamente - muito mais consagrada do que a de Plauto. "Molière coloca a questão com doçura, por meio de seu humor, talvez para dizer que podemos falar assim desse tipo de ser humano, mas estamos falando de um assunto patológico", concorda o diretor da peça, Felipe Hirsch.

"Cultuando o dinheiro, desrespeitando as proporções e os valores justos, ele se mostra antinatural, desumano, e é isso que Molière não perdoa", afirma Bárbara. Não é à toa, destaca a crítica, que o autor francês elegeu em sua obra o dinheiro e o ciúme entre os temas principais. São equivalentes. O ciúme desmedido também pode fazer a vida insuportável.

Certamente por ter testemunhado a era de formação do capitalismo, Shakespeare elegeu o dinheiro como o âmago de uma de suas maiores peças, "O Mercador de Veneza". Ao contar a história de Shylock - o judeu que espera receber, em pagamento de uma dívida, um naco da carne do devedor - o autor, no século XVI, já enumera conceitos do capitalismo, como o risco do crédito, o spread abusivo, o desperdício de patrimônio, a incompetência dos herdeiros, a necessidade de hedge, a regra básica de diversificação de investimentos, entre tantos outros. O texto de Shakespeare deveria freqüentar qualquer empresa, banco ou sala de aula de economia.

Enquanto os clássicos se ocupam amplamente de temas financeiros, os textos contemporâneos sobre esses assuntos, por aqui, são raros. "No Brasil, atualmente, só querem falar sobre sexo", ataca Bárbara. Ela lembra que o teatro brasileiro sempre foi mais político-ideológico do que voltado para a economia. "Primeiro, por motivo histórico, que foi a ditadura. Depois, porque a economia brasileira nunca foi lá essas coisas para merecer uma dramaturgia própria. Os autores, com toda razão, sempre preferiram falar dos sentimentos humanos que são originados no ambiente que se vive e esse ambiente está, de qualquer forma, influenciado pelas questões da economia e do dinheiro", afirma. "Mas já estava na hora de os autores prestarem mais atenção em alguns problemas crônicos do país no que tange à economia."

Um dos coordenadores do ciclo de leituras dramáticas do Sesi, Borghi leu, na última seleção, mais de 150 textos de novos autores. Ele concorda que o tema é desprezado pela maioria. Neste bolo, alguns falavam da miséria nordestina ou de mazelas nacionais, mas o dinheiro, ele mesmo, estava ausente. "Está fazendo falta. Gostaria de encontrar isso na dramaturgia nacional, alguém que pegasse o tema e o abordasse de forma dialética e não partidária ou simplesmente antibancária", diz o ator.

Borghi lembra que, durante a ditadura, os autores obrigatoriamente voltaram-se para os temas ideológicos. Depois, na década de 1980, falar dessa realidade soava de mau gosto, era quase que necessário falar das patologias, dramas psicológicos, "como se estes não tivessem a ver com a grana". Mas estavam mais preocupados em discutir a relação. "Era natural, porque a censura era moralista e queriam falar dessas coisas, do sexo, da vida amorosa ou do comportamento simplesmente", lembra Borghi. "A nova dramaturgia vai tratar desse tema porque o momento que estamos vivendo no país impõe."

Felipe Hirsch, embora discorde da afirmação de que a dramaturgia nacional seja pobre no tema, vê necessidade de discuti-lo mais. "É óbvia a importância de montar 'O Avarento', ainda mais quando a gente ouve defesas à ética distorcida ou que os fins justificam os meios. A peça fala de como o poder, as classes dominantes e as pessoas lidam com o dinheiro e temos de falar disso quando alguns começam a acreditar que uma atitude ilícita é, de algum jeito, justificável", afirma.

No segundo texto de sua trilogia iniciada com "Regurgitofagia", o vanguardista carioca Michel Melamed foi um dos poucos a entrarem no tema nos últimos tempos. Embora a crítica tenha recebido seu espetáculo com menos entusiasmo que o primeiro - no qual ele sentia choques quando a platéia ria-, Melamed colocou a questão em cena com a peça "Dinheiro Grátis", na qual já no título diz a que veio. Seguindo sua linha de teatro participativo, Melamed encena um leilão usando o bordão "não tem preço", adotado pela propaganda de um cartão de crédito. O autor explora a construção do caráter financista na vida moderna e estimula a reflexão sobre seus efeitos na convivência urbanóide, mas "Dinheiro Grátis" ainda é muito pouco para cobrir o débito da dramaturgia brasileira.

Sem textos nacionais, os interessados no tema agarram-se a clássicos ou autores estrangeiros atentos. A diretora Ariela Goldman, por exemplo, estuda alguns textos, entre eles "Glengarry Glen Ross" ("O Sucesso a Qualquer Preço", no cinema), de David Mamet. Atualmente ensaiando "Edmond", outra peça de Mamet, Ariela quer falar sobre dinheiro. "Tendemos a pensar em dinheiro, mesmo quando vai tratar de valor por um trabalho, como uma manifestação menor da vida. As pessoas têm vergonha de falar e esquecem que o comércio é uma troca. E ali está também incluída uma troca humana, seja entre pessoas, empresas ou países", diz a diretora de "Novas Diretrizes em Tempos de Paz" (2002).

Mamet consagrou-se com este texto, vencedor do Prêmio Pulitzer de 1984. Cinco corretores são capazes de qualquer coisa para cumprir suas metas de vendas - no caso, o novo empreendimento que dá título à peça. "Mamet se utiliza disso para mostrar como se dão as relações humanas, como cada um se vira para vender. Neste momento, me interessa muito colocar esse tema no palco", afirma Ariela. Em "Edmond", uma cigana alerta um executivo de que sua vida é uma droga, apesar de ele ter no banco quantia suficiente para comprar tudo o que quer.