Título: A CPMF e o acesso aos dados bancários
Autor: Helenilson Cunha Pontes
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2004, Legislação, p. E2

Matéria de grande indagação e controvérsia no âmbito doutrinário e jurisprudencial é aquela relativa à possibilidade de utilização de informações bancárias, notadamente aquelas decorrentes do recolhimento de CPMF, no processo de lançamento de tributos por parte das autoridades federais. Necessário recordar que quando da criação do então IPMF uma das questões mais tormentosas foi justamente a possibilidade de o Fisco utilizar os dados pertinentes à arrecadação deste tributo como instrumento para a exigência dos demais tributos federais. Como a sistemática de arrecadação do IPMF envolve operações bancárias, temia-se, à época, que o Estado obtivesse o tão desejado amplo acesso às contas bancárias dos contribuintes, burlando a garantia do sigilo bancário. O receio de aniquilamento do sigilo bancário diante do Fisco foi a razão de ser da inserção do § 3º do artigo 11 da Lei nº 9.311/96, que instituiu a CPMF, o qual está veiculado nos seguintes termos: "A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para a constituição de crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos". Esta norma foi, à época, fruto de amplo acordo parlamentar para viabilizar a aprovação da CPMF. Ocorre que esta proteção legal foi retirada do contribuinte pela Lei nº 10.174/2001, a qual, conferindo nova redação ao parágrafo terceiro supra citado, passou a estabelecer que "A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no artigo 42, da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores". Vale dizer: a anterior vedação virou expressa autorização legal. Parece-me que a aplicação da nova legislação a fatos praticados antes da sua edição causa inegável lesão ao princípio da segurança jurídica, materializado na proteção constitucional à aplicação retroativa de leis que causem restrição à esfera jurídica individual (artigo 5º, XXXVI e XL, da Constituição Federal). Sob a perspectiva de um Estado democrático de direito não é permitido ao Estado produzir leis que operem retroativamente em desfavor dos indivíduos, sobretudo quando o beneficiado por esta aplicação retroativa é o próprio Estado, como acontece na hipótese ora analisada. Não é compatível com a segurança jurídica permitir que atos jurídicos praticados sob um regime jurídico de proteção, porque assim desejou o legislador da época da realização daqueles atos, abruptamente percam tal abrigo, mediante a sua submissão a norma legal editada posteriormente. Não me impressiona o argumento daqueles que sustentam tratar-se aquela norma de mera alteração na competência das autoridades administrativas e não de autêntica norma de lançamento tributário, a qual apenas pode ter eficácia pro futuro. À evidência, a nova legislação amplia os poderes investigatórios do Fisco sobre fatos praticados no passado sob um regime jurídico expressamente protetor. Diante disso, como sustentar que se trata de mera norma administrativa? Normas administrativas de aplicação imediata são apenas aquelas que não atingem o administrado; são aquelas que objetivam tão somente a organização da administração, sem interferir com a esfera jurídica dos indivíduos, o que à clareza solar não ocorre com a norma sob comento. Além de considerações de caráter técnico-jurídico, relevante ressaltar a conotação moral que o debate revela, na medida em que a aplicação da nova legislação sobre fatos praticados no passado implica referendar o ardil estatal cuja vítima são os indivíduos que praticaram atos jurídicos no passado sob um regime jurídico de proteção e agora têm contra si a pretensão estatal derivada de tais atos. Ao Estado brasileiro compete agir com atenção ao princípio da moralidade (artigo 37, caput, Constituição Federal), o qual impede a prática de ações que violem a boa-fé e a confiança manifestada por aqueles que conduziram suas ações sob um determinado regime jurídico. Como observou Fernando Scaff, em obra sobre a responsabilidade do Estado, os governantes devem proceder no comando do Estado agindo de boa-fé com seus governados, uma vez que é por conta destes que eles lá se encontram. É preciso estar atento ao avanço sutil, permanente e progressivo do Estado sobre as liberdades individuais. Os instrumentos legais existentes são perfeitamente suficientes ao exercício da regular função fiscalizatória, sem necessidade da aplicação retroativa de legislação mais restritiva aos direitos individuais, o que configura manifesta ofensa ao conjunto de princípios constitucionais reguladores da relação Fisco-Contribuinte nos quadrantes de um Estado democrático de direito.