Título: A Resolução nº 33 do Senado e a dívida ativa
Autor: Netto, Agostinho
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Inaugurou a Resolução nº 33 do Senado Federal, de 2006, a terceirização da cobrança de valores inscritos em dívida ativa de Estados, do Distrito Federal e dos municípios. O referido ato legislativo tem como específico objeto a autorização às unidades federativas nacionais, excetuada, até aqui, a União, para a cessão a instituições financeiras da cobrança do total apontado em suas dívidas ativas consolidadas. Tal processo dar-se-ia com o emprego da figura do endosso-mandato, resultando na antecipação de receita até o valor de face, desde que respeitados os limites e condições impostos pela Lei Complementar nº 101, de 2000 - a Lei de Responsabilidade Fiscal -, e pelas Resoluções nº 40 e 43 do Senado Federal. Quitados os valores, a instituição financeira os repassará à unidade federativa cedente/endossante-mandante, remunerando-se aquela dos custos fixados em contrato.

Anotam-se objeções variadas ao pretendido pela Resolução nº 33, que vão desde a desatenção ao princípio da indisponibilidade do interesse público, passando pelo atentado à moralidade administrativa por ultrapassagem à obrigatória invocação da figura da licitação pública até, observadas disposições constitucionais ou equivalentes à veiculada pela artigo 131, parágrafo 3º da Constituição Federal vigente, o esboroamento de competências institucionais e funcionais. Todas igualmente pertinentes, mas todas com foco primordial no aspecto substantivo do tema. Não se as considerando, sublinhe-se, de menor importância, não se autoriza negligenciar os evidentes defeitos formais que maculam a Resolução nº 33. Precisando a linha argumentativa, o que se sugere é realçar a impropriedade da veiculação por resolução senatorial de norma que autoriza a cessão (terceirização da cobrança de valores em dívida ativa) dos créditos públicos, para cobrança, à instituição financeira.

Como de sabença geral, a resolução senatorial é uma espécie de ato legislativo adotado em função das competências reservadas constitucionalmente ao Senado Federal, podendo veicular, ao lado de conteúdos político, co-participativo de função judicial e de ato-condição de função legislativa, conteúdo deliberativo puro. Seja de que modo for, a identificação como incensurável de alguma resolução do Senado Federal demanda a confirmação de sua congruência com qualquer dos incisos do artigo 52 da Constituição Federal.

-------------------------------------------------------------------------------- Há um claro vício formal, ao lado de outros de natureza material, a marcar a resolução do Senado --------------------------------------------------------------------------------

Ora, a Resolução nº 33, desviando-se dessa premissa, pretende o tratamento do regime jurídico na cobrança do crédito público. Não é uma hipótese contemplada pela norma constitucional citada, cabendo desautorizar-se, de outro giro, a prevalência de sofisma que se sustente a partir da leitura de seu inciso VII, relembre-se, limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, de suas autarquias e demais entidades controladas pelo poder público federal. Vale dizer, não cuida exclusivamente de qualquer limite ou condição para operação de crédito de ente federativo, cuja definição legal, sublinhe-se, é dada nos termos do inciso III do artigo 29 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Afastada, por óbvia impropriedade, a sinomização entre recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços e autorização a terceiros para a cobrança de seus haveres, cabe não se deslembrar que há previsão precisa para tratamento específico do crédito tributário e da obrigação tributária. Refere-se aqui ao artigo 146, inciso III, alínea "b": cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários. Impõe, pois, a Constituição Federal a disciplina da cobrança dos créditos fiscais, tributários ou não, sempre por intermédio da modalidade normativa complementar, não cabendo a sua disciplina a partir de texto de resolução do Senado Federal.

Perfile-se em argumento ainda, particularmente à União, a Lei Complementar nº 73, de 1993, que, congruente com o artigo 131, parágrafo 3º da Constituição de 1988, em seu artigo 12, inciso II, determina específico tratamento da representação da União na execução de sua dívida ativa de caráter tributário; e a Lei nº 4.320, de 1964, que por força do artigo 163, inciso I da Constituição de 1988, detendo conteúdo substantivamente complementar, em seu artigo 39 define dívida ativa tributária e não tributária, e pelo parágrafo 5º desta mesma disposição estabelece que a dívida ativa da União, não importando se tributária ou não-tributária, será apurada e inscrita, e por óbvia decorrência lógica, cobrada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e pelos procuradores da Fazenda Nacional. E relativamente a estes, sem falar na imposição legal proposta pelo artigo 25 da Medida Provisória nº 303, de 2006, segundo o qual aos procuradores da Fazenda Nacional cabe a representação judicial na cobrança de créditos de qualquer natureza inscritos em dívida ativa da União. Há, portanto, claro vício formal, ao lado de outros de natureza material, a marcar a Resolução nº 33 do Senado.

Agostinho Netto é procurador da Fazenda Nacional no Rio de Janeiro