Título: Uma reflexão sobre os efeitos dos subsídios agrícolas
Autor: Dantas, Adriana
Fonte: Valor Econômico, 01/09/2006, Opinião, p. A14
As disputas envolvendo produtos agrícolas, levadas à apreciação do sistema de solução de controvérsias da OMC, demonstraram as falhas das regras vigentes e a sua ineficácia, sobretudo no que concerne à redução dos subsídios. As decisões proferidas na disputa do algodão, na qual o Brasil questionou o conjunto de programas de subsídios concedidos pelo governo dos Estados Unidos, demonstraram que medidas de apoio interno e de incentivo à exportação de algodão asseguram níveis artificialmente elevados de produção e exportação desse produto, em violação aos compromissos assumidos pelos EUA.
Mais de um ano já se passou após a decisão final tomada pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, mas a respectiva implementação ainda está distante. Diante dessa realidade, o governo brasileiro iniciará, em breve, novo processo para avaliar a conformidade das medidas adotadas pelos EUA com as determinações do Órgão e para solicitar autorização para retaliar.
Tais disputas demonstraram que os problemas do comércio agrícola mundial estão interligados, tendo a questão dos subsídios, sobretudo as medidas de apoio doméstico, como fator central. Sem a redução destes subsídios não há o que se falar em liberalização do comércio agrícola. Essa redução é crucial para a promoção do desenvolvimento sustentável, como foi reconhecido por especialistas internacionais reunidos em seminário promovido recentemente pela Direito GV - GV Law, em São Paulo.
Uma das questões discutidas durante o evento foi se as regras da OMC deveriam ser alteradas com vistas a introduzir outros critérios de avaliação dos subsídios. Em geral, os subsídios concedidos pelos membros mais ricos da OMC beneficiam grandes produtores, que se dedicam à agricultura intensiva. Esta forma de cultivo privilegia ganhos em produção, em detrimento dos impactos ambientais que, muitas vezes, não se restringem ao território do país que conferiu o apoio financeiro inicialmente.
Constata-se que subsídios acarretam severa perda de bem-estar social tanto nos países onde o apoio é concedido, como em terceiros mercados. No primeiro caso, subsídios, aliados a políticas que restringem o acesso a importações, ocasionam o aumento do preço dos produtos. Além disso, subsídios calculados com base na área cultivada valorizam a terra e aumentam os custos de sua aquisição para, por exemplo, utilização como reserva natural. Dentre os efeitos ocasionados a outros mercados ou países, destacam-se os impactos sociais atrelados à inviabilidade econômica de determinado cultivo.
Tem-se, pois, que políticas agrícolas implementadas por potências, como os EUA, ocasionam efeitos diversos que não se restringem às fronteiras deste país. Não obstante, as regras internacionais que disciplinam a concessão de subsídios condenam apenas a distorção causada ao comércio internacional, tendo em conta os danos que acarretam aos interesses dos outros membros. Esses danos cuidam tão-somente de fatores econômicos, como o deslocamento de importações, a depreciação e a supressão dos preços internacionais. Desconsidera, contudo, possíveis impactos sobre o meio ambiente relacionados a esses subsídios, como ocorre no caso da agricultura e dos subsídios à pesca.
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Ante essa realidade, investigou-se os efeitos da introdução de outros critérios, tais como: benefícios ambientais dos subsídios, possibilidade de redução da pobreza, benefícios sociais, entre outros. Constatou-se, contudo, que a introdução desses critérios pode ocasionar a flexibilização das regras, o que só beneficiaria os países desenvolvidos. Isto porque apenas este grupo de países detém recursos financeiros para conceder subsídios. Na realidade, as regras vigentes já permitem a implementação de políticas voltadas ao desenvolvimento sustentável, a única restrição refere-se àquelas que acarretam efeitos sobre a produção.
Com base na análise da experiência acumulada nos últimos anos de implementação do Acordo sobre Agricultura, negociado na Rodada Uruguai, conclui-se que várias são as brechas existentes no sistema atual que perpetuam desigualdades entre países ricos e aqueles em desenvolvimento. Daí a importância de fortalecê-las, criando mecanismos eficazes que possam promover a progressiva redução dos subsídios.
Trata-se de um imperativo, sobretudo tendo em vista os ideais de promoção do desenvolvimento, por meio da contínua liberalização do comércio, que nortearam a abertura da Rodada Doha. Estes ideais impõem reflexões acerca da exigência do dever de solidariedade entre as nações, da existência de responsabilidades em um mundo interdependente e do reconhecimento de que a sociedade internacional exerce um papel na promoção e realização da justiça global, seja por meio da garantia de valores comuns, como os direitos humanos e à democracia, ou pela promoção da igualdade, do equilíbrio e da distribuição dos ônus e benefícios entre os membros da OMC.
Nesse contexto, a resistência dos países em desenvolvimento em aceitar as modestas concessões apresentadas pelos EUA e União Européia na Rodada Doha é a resposta necessária e o instrumento capaz de permitir a evolução do sistema multilateral de comércio para que este possa, progressivamente, assegurar condições mínimas de eqüidade e justiça, bem como reconhecer direitos humanos inalienáveis, a exemplo do "direito ao desenvolvimento".
A recente suspensão das negociações da Rodada Doha constitui, portanto, uma oportunidade. O sistema multilateral do comércio tem uma nova chance de evoluir e ampliar sua legitimidade: desde que passe a favorecer as partes econômica e politicamente mais fracas, e não apenas as mais fortes.
Adriana Dantas é professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (Direito GV - GVlaw), doutoranda em Direito Internacional na Universidade de São Paulo, Research Fellow do Instituto de Direito Internacional Econômico, Universidade de Georgetown (EUA) e advogada em São Paulo.