Título: No reino do pragmatismo
Autor: Juliano, Carolina
Fonte: Valor Econômico, 18/08/2006, Eu & Fim de Semana, p. 4 e 5

A ideologia está em baixa. E se for aplicado o sentido exato da palavra ao processo eleitoral que o Brasil atravessa, ou seja, se a ideologia for interpretada como sistema de idéias interdependentes e sustentadas por um grupo social, que reflete e defende os próprios interesses e compromissos institucionais - morais, religiosos, políticos ou econômicos -, será fácil perceber que a ideologia não só está em baixa, mas já agoniza. É a vitória absoluta do pragmatismo.

Na semana em que o eleitor começou a ter contato mais direto com os candidatos às eleições proporcionais e majoritárias, por meio do horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão, fica ainda mais evidente que as coligações partidárias que dão sustentação às candidaturas obedecem a qualquer critério, menos o ideológico.

Por todo o país vêem-se partidos que se dizem de esquerda coligados com os que se posicionam como de direita, outros que se apresentam como de centro-direita aliados aos chamados de centro-esquerda, candidatos que em outros tempos duelaram em bancadas opostas nas câmaras legislativas de mãos dadas nos palanques de campanha, e mais uma série de cenas que, não fossem trágicas, poderiam até ser cômicas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colaborou também para a criação de outro cenário pouco favorável à ideologia. Primeiro, tentou engessar as coligações, ao obrigar que acordos fechados para as eleições nacionais fossem repetidos nas eleições estaduais. Mas o Tribunal voltou atrás e liberou os partidos que não lançaram candidatos à Presidência da República para fecharem qualquer coligação nos Estados. "Coligação é troca de conveniências", sentencia Paulo Kramer, cientista político da Universidade de Brasília (UnB) e consultor da Kramer & Ornelas.

Custodio Coimbra/Ag. O Globo Denise Frossard, do PPS, disputa o governo do Rio com apoio do PV, também dito de esquerda, mas não dispensou o PFL, aliado do PSDB para a Presidência, com Geraldo Alckmin Com a verticalização afrouxada, criaram-se situações de apoios diretos ou indiretos que uniram legendas improváveis. O Partido Popular Socialista (PPS) com o Partido da Frente Liberal (PFL), no Rio de Janeiro, por exemplo. O PFL é uma legenda que surgiu no fim da ditadura militar e foi constituída por políticos da antiga União Democrática Nacional (UDN). Muitos de seus integrantes apoiaram o golpe de 1964. O PPS derivou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que não só se opôs à ditadura como foi perseguido por ela. O PFL tem em sua base representantes da elite nacional. O PPS é liderado por intelectuais ditos de esquerda.

No caso do Rio de Janeiro, a candidata do PPS é a deputada federal Denise Frossard. Na coligação que apóia sua candidatura está, além do PFL, o Partido Verde (PV), que também nasceu na esquerda. Por tabela, Denise Frossard conseguiu que Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à Presidência da República, subisse ao seu palanque. Isso porque, nas eleições nacionais, o PFL (da coligação de Frossard) está coligado com o PSDB para apoiar Alckmin.

No Acre, a ideologia padece ainda mais. O Partido dos Trabalhadores (PT) está coligado com o Partido Progressista (PP), além de PL, PRTB (o partido do ex-presidente Collor de Mello), PMN, PSB e PCdoB, na chapa que apóia a candidatura de Binho Marques (PT) para o governo do Estado, com César Messias (PP) como vice.

Para ficar apenas na comparação histórica, o PP surgiu do PDS (Partido Democrático Social), que apoiou Paulo Maluf nas eleições indiretas para a Presidência da República, em 1985, quando foi eleito Tancredo Neves. E o PT foi fundado cinco anos antes, em 1980, por um grupo formado por dirigentes sindicais, intelectuais de esquerda e católicos ligados à Teologia da Libertação.

"É verdade que o passar do tempo revelou um padrão de consistência ideológica nas coligações concorrentes às eleições realizadas depois do fim do regime militar, com partidos de esquerda e de direita preferindo aliar-se aos seus similares", explica Kramer. "Mas, em última análise, é sempre o pragmatismo que dita a regra suprema: aliar-se para derrotar o principal adversário."

Kramer explica que as coligações para as eleições proporcionais não têm nenhuma utilidade para o bem público. "São feitas com o fim exclusivo de facilitar a eleição do candidato e se desfazem no mesmo dia da contagem dos votos, sem nenhum comprometimento que não seja o de vencer a eleição."

Nas eleições deste ano, apenas uma coligação parece obedecer a certa linha ideológica. A chamada Frente de Esquerda é formada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU) e Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mas também esse conglomerado de perfil melhor definido teve sua imagem ameaçada quando o ex-governador Anthony Garotinho (do PMDB), descontente com as alianças fechadas por seu partido, declarou seu voto em Heloísa Helena, candidata da Frente de Esquerda à presidência da República.

"Não acredito que a verticalização, nem aquela mais severa que o TSE havia aprovado, seja capaz de inibir essas alianças biodegradáveis. Não há como eliminar um costume político por força de lei", diz Kramer. O professor explica que a dinâmica política dos Estados é diferente da dinâmica política do país e os apoios regionais dão-se sempre em torno de interesses particularmente regionais, independentemente de qual seja a sigla partidária.

-------------------------------------------------------------------------------- "A regionalização une interesses e não ideologias. Partidos muito diferentes se unem para eleger um indivíduo em alianças sem identidade" --------------------------------------------------------------------------------

No atual cenário eleitoral brasileiro, é possível destacar numerosos casos de partidos que, informalmente - porque formalmente a lei não permite - se apóiam nos Estados. Em Alagoas, o presidente do PSDB, Alexandre Toledo, ex-prefeito do município de Penedo, deixou a função partidária por discordar da decisão do partido de apoiar para o Senado Federal o nome do ex-governador Ronaldo Lessa, do PDT. Saiu da direção do partido para apoiar informalmente o deputado federal José Thomaz Nonô, do PFL, seu aliado há muitos anos. Mesmo tendo se afastado da cúpula do PSDB, porém, continua sendo o coordenador da campanha de Geraldo Alckmin no Estado.

Na Paraíba, petistas de Campina Grande, insatisfeitos com o acordo fechado pelo partido para apoiar o candidato do PMDB ao governo, o senador José Maranhão, buscaram acordo com o PSDB para a criação de um comitê que uniria as candidaturas à reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (do PT) e do governador Cássio Cunha Lima (do PSDB) no segundo maior colégio eleitoral do Estado.

Outro exemplo da vitória da regionalização sobre a ideologia está no Piauí. O PSDB e o PFL - coligados para a eleição nacional, em apoio à candidatura de Alckmin - cortaram relações depois que o PFL resolveu lançar a candidatura de Hugo Napoleão ao Senado Federal à revelia do partido tucano. Quem saiu ganhando com essa briga foi Alckmin, que ficou com dois palanques de campanha no Estado.

Também no Piauí, o senador Mão Santa, candidato ao governo do Estado pelo PMDB, ignorou a determinação da executiva nacional do partido para apoiar a reeleição do presidente Lula e declarou apoio a Geraldo Alckmin, a quem ofereceu palanque. Ou seja, o tucano vai levar o seu apoio a três candidatos no Piauí.

"O maior problema dessas coligações para as eleições proporcionais é que o eleitor acaba sendo enganado. Ele vota no que vê e elege o que não vê", diz Silvana Krause, professora do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Goiás e organizadora do livro "Partidos e Coligações Eleitorais no Brasil" (Fundação Konrad Adenauer e Fundação Editora da Unesp).

Silvana explica que o cálculo feito para a distribuição das cadeiras, depois que uma coligação vence a eleição, sempre acaba privilegiando o indivíduo e não o partido. "O eleitor pode votar em determinado candidato por ele estar coligado com um partido do seu agrado, mas que pode nem se fazer representar na câmara legislativa depois da contagem dos votos."

Um dos aspectos mais danosos das coligações, de acordo com a professora, são justamente as distorções das identidades ideológicas. "A regionalização acaba unindo interesses e não ideologias. Cada vez mais, partidos muito diferentes se unem para eleger um indivíduo em alianças que não têm identidade."

Silvana diz que as coligações para as eleições majoritárias também são problemáticas porque acabam desqualificando uma ação coesa dos partidos e ainda provocam um certo constrangimento de o candidato ao cargo majoritário ter que se dividir entre vários palanques de campanha.

Mais uma vez, o Rio de Janeiro tem um exemplo para ilustrar a situação. O candidato ao governo pelo PRB, Marcelo Crivella, é o segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto e é apoiado pelo presidente Lula porque seu partido é o mesmo do vice-presidente José Alencar. Lula participou, dias atrás, de um grande comício que Crivella realizou na Cinelândia. Antes, porém, subiu ao palanque do candidato do seu partido, o PT, Vladimir Palmeira, que amarga 1% das intenções de voto, segundo as últimas pesquisas.

"Essa falta de coesão, essa discordância ideológica certamente irá refletir na administração pública", explica Silvana. Tramita no Congresso Nacional um projeto de reforma política que prevê a criação de uma federação de partidos. Os partidos que vencerem as eleições ficariam obrigados a participar efetivamente do governo, mantendo-se a mesma aliança da eleição. Os eleitos só poderiam sair do grupo no último ano do mandato.

O problema é que esperar que o Congresso aprove uma reforma política é o mesmo que esperar que a "raposa tome conta do galinheiro", diz Paulo Kramer. "Uma reforma efetiva só será conseguida se negociada para longos prazos, como ocorreu com a cláusula de barreira - que começa a valer este ano, mas foi negociada há dez anos."

A cláusula de barreira, medida que valerá pela primeira vez nas eleições de outubro, determina que só terão representatividade em 2007 os partidos que conseguirem 5% dos votos nacionais e 2% em nove Estados. "Vários partidos poderão deixar de existir, inclusive partidos importantes em outros tempos, como o PDT", explica Kramer. "É um passo pequeno ainda da reforma política, mas importante. É um começo."