Título: O futuro Museu Jacques Chirac
Autor: Bareyre, Karina
Fonte: Valor Econômico, 18/08/2006, Eu & Fim de Semana, p. 14 à 17

Em maio de 1995, quando Jacques Chirac assumiu a Presidência da França, substituindo François Mitterrand (1916-1996), ele provavelmente já tinha em mente qual seria o legado que deixaria para o povo francês. Não seria nenhuma realização econômica ou uma iniciativa de política social. Na realidade, sua grande obra envolveria outra pasta do governo, a da Cultura. Sua intenção era construir um monumento que se tornasse mais um ponto turístico de Paris e fosse lembrado como "obra de Chirac". Passados 11 anos e depois de gastar 235,2 milhões de euros (R$ 658 milhões), o presidente conseguiu concretizar seu sonho e deixar sua marca na Cidade Luz com a abertura do Museu Quai Branly, dedicado às artes e civilizações da América, Ásia, África e Oceania.

Inaugurado há pouco mais de um mês, o novo museu ultrapassou todas as expectativas do governo e já é um sucesso de público. Cerca de 4 mil pessoas o visitam diariamente, enfrentando uma fila de espera que dura em média duas horas. Apesar de visitas a museus serem uma prática normal tanto de franceses quanto dos turistas que vêm à cidade, o que mais tem chamado a atenção das pessoas é a arquitetura moderna do local, realizada pelo arquiteto Jean Nouvel, após ganhar um concurso internacional que tinha entre seus jurados o atual vice-governador do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde.

O público é atraído pela curiosidade de ver um museu que lembra uma grande passarela e destoa completamente da arquitetura dos edifícios haussmanianos (referentes ao barão de Haussmann, que reconstruiu Paris no século XIX). Instalado na margem esquerda do Sena e ao lado da Torre Eiffel, a procura para ver o novo monumento de Paris, seja para admirá-lo ou criticá-lo, lembra a história da inauguração de um outro museu da cidade, o Centro de Arte Contemporânea Georges Pompidou, em 1977. A arquitetura irreverente, com suas imensas tubulações aparecendo, atraiu tanto as pessoas que hoje o Centro é considerado um dos pontos turísticos mais visitados da França, recebendo mais de 7 milhões de pessoas ao ano.

Quando completou 25 anos, o Centro já contabilizava 150 milhões de visitantes. A Torre Eiffel, por exemplo, recebeu da data de inauguração, em 1889, até 2005, 222 milhões de visitantes. Isso se deve à enorme rejeição ao monumento de Gustave Eiffel na época - e Paris também não recebia os 10 milhões de turistas ao ano que recebe hoje. Mas, aos poucos, a atração arquitetônica foi se tornando um bom aliado para convencer as pessoas a visitá-la.

Os idealizadores do Quai Branly se inspiraram nessa experiência. "Paris é muito conservadora em matéria de arquitetura, mas nos pareceu importante criar algo novo. Não queríamos criar um templo de adoração. Pensamos em um lugar que dê vontade nas pessoas de entrarem", disse ao Valor o presidente do museu, Stéphane Martin.

Além do museu, o monumento, que foi construído no último terreno vazio no centro turístico da cidade, vencendo a pressão imobiliária, também abriga um jardim de 17.500 m2, teatro, cinema e universidade. O acervo já é considerado um dos mais importantes do mundo em arte primitiva, com 300 mil obras autóctones dos séculos XV ao XX. Muitas dessas relíquias foram doadas por estudiosos franceses que traziam souvenires para casa de suas expedições pelo mundo afora. Do Brasil, chamam a atenção bonecas eróticas da tribo carajá, de Goiás, doadas por Claude Lévi-Strauss. Mas o mais interessante é uma arma indígena do século XVI utilizada pela tribo tupinambá e trazida a Paris na bagagem dos franceses expulsos pelos portugueses, numa tentativa frustrada de conquistar o país. "Na época, era o que existia de mais antigo de outro país no território francês", afirma Martin.

Ainda é cedo para dizer se a curiosidade permanecerá e se o Quai Branly vai se igualar ou ultrapassar em visitantes o Georges Pompidou, seu principal rival em arquitetura. Mas uma coisa é certa: a grande preocupação de Chirac quando se engajou pessoalmente nesse projeto era fazer com que o francês o associasse ao museu, evitando assim cair no esquecimento. E a medida foi uma boa estratégia, já que os últimos acontecimentos na França mostram a impopularidade do presidente. Ele não conseguiu aprovar a Constituição Européia e o "não" foi interpretado como um "não" dos franceses a Chirac.

Recentemente, os distúrbios nas ruas de Paris e em outras cidades também ressaltou uma outro ponto fraco de seu governo: o desemprego. Jovens do subúrbio, cansados da discriminação, rebelaram-se e tomaram as ruas, colocando fogo em carros e espalhando medo e insegurança. Diante de tal quadro, nada melhor que um monumento para ser lembrado, já que o governo deixou a desejar.

Tudo foi pensado politicamente, da arquitetura à escolha do acervo. Segundo Martin, associar um monumento a uma gestão é prática comum na França e tem origem na monarquia. "Aqui não se pode ser presidente sem acreditar na cultura, sem ter um programa para essa área. É como na América Latina, no Brasil, onde não podemos imaginar um presidente que não acredite em Deus. A construção deste museu foi uma escolha política de Chirac, que viu a necessidade de homenagear os países marginalizados e suas 'arts premiers'", acrescenta o presidente do museu.

Aliás, a referência a "arts premiers" e não "arts primitifs" também é uma decisão de Estado. "Na história da arte, o nome primitivo significa primeiro, mas em francês tem uma conotação pejorativa, ligada a selvagem; ficamos com medo que, como são obras de países de fora da Europa, fossem discriminadas, vistas como uma arte menor. Então, resolvemos mudar o modo de dizer, explica Martin.

Na verdade, a preocupação era que se associasse o governo de Chirac a algo de segunda classe e que no futuro surgissem piadas sobre isso. Primeiros ou primitivos, o fato é que os governantes aprenderam com os reis que na política a memória é curta e cair no esquecimento do povo é só uma questão de anos. Passaram a copiá-los tentando construir algo grandioso, para que o seu governo fosse sempre lembrado.

Não há quem olhe para o Arco do Triunfo e não se lembre que foi construído a pedido de Napoleão Bonaparte para simbolizar suas vitórias. O governo de Georges Pompidou é pouquíssimo lembrado, mas todo mundo sabe que ele foi presidente, por associação a seu empenho na construção de um centro de arte contemporânea no coração de Paris com uma arquitetura de traços polêmicos.

O ex-presidente de esquerda, François Mitterrand, ainda é mais recordado pelo seu legado político, já que não faz tanto tempo que deixou o poder, sem contar que governou por 14 anos. Mas o medo do esquecimento devia assombrá-lo, porque, mesmo com todo seu peso na política francesa, ele foi um dos presidentes que mais deixou obras na cidade. É dele o projeto da Pirâmide do Louvre, da Ópera da Bastilha, da Casa do Mundo Árabe e da Biblioteca Nacional François Mitterrand, um conjunto moderno de prédios em forma de livros abertos destinado a abrigar um dos mais importantes acervos do mundo.

Hoje, Chirac é um dos governantes franceses mais conhecidos de todos os tempos, graças a sua trajetória política. Antes de se tornar presidente, foi ministro da Agricultura, do Interior, primeiro-ministro nos governos de Valéry Giscard d'Estaing e François Mitterrand, e prefeito de Paris. Fez seu nome atuando na política internacional, empenhou-se na adesão de novos países à União Européia e na resoluçãos de conflitos no Oriente Médio.

Mas, e amanhã? Prestes a terminar o segundo mandato presidencial e se aposentar, Chirac não quis correr o risco de, daqui a 30 ou 50 anos, ninguém mais se lembrar de seu governo. Nada melhor do que deixar uma marca cultural, como fizeram seus antecessores. A imprensa francesa cogita que dentro de pouco tempo o museu Quai Branly ganhará o nome de Jacques Chirac.

Martin diz que não acredita que isso aconteça enquanto Chirac estiver vivo. "A tradição na França é homenagear os presidentes só depois de mortos, como ocorreu com Pompidou e com Mitterrand." O próprio presidente, quando perguntado sobre o assunto, desconversa, dizendo que não sabe se seria uma boa idéia, mas admite que seria uma honra.