Título: A aprovação de patentes na contramão do mundo
Autor: Gabriel Tannus
Fonte: Valor Econômico, 10/12/2004, Opinião, p. A10

O poeta Carlos Drummond de Andrade, mineiro de nascimento e cidadão do Brasil por opção, fez uma ode em seu poema "Menino Antigo" a uma das coisas mais brasileiras do nosso país: a jabuticaba. "Jabuticaba se chupa no pé", diz o poema, que trata da pequena fruta roxa escura, de sabor adocicado. Natural da Mata Atlântica, a jabuticaba é original do Brasil e, curiosamente, não se acha dessas frutinhas em nenhum outro lugar do mundo. Tão exclusivo quanto a jabuticaba é o artigo 229 C, introduzido na lei de propriedade intelectual, de 1996, por meio da medida provisória 2.006/99, que foi convertida na lei 10.196/01. De acordo com esse artigo, determinou-se que as patentes de produtos farmacêuticos somente podem ser concedidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) depois de revisão e anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sem querer fazer pouco da nossa "pretinha notável", defender a figura da anuência prévia é ir na contramão do mundo. Mas como diz o brilhante escritor brasileiro Luiz Fernando Veríssimo, no Brasil, em sendo possível fazer as coisas mais difíceis, não há razão para simplificá-las. A lei 10.196/01 não esclarece quais os fundamentos, segundo os quais a Anvisa poderia outorgar ou não o "consentimento prévio". Essa omissão, que por si só já seria razão suficiente para determinar a ilegalidade da medida, também viola o Acordo sobre Aspectos de Direito da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, o Trips (sigla em inglês), pois não é uma condição razoável para o processo de concessão. O consentimento prévio é dado pela Anvisa após o processo ter sido examinado e o pedido de patente ter sido deferido pelo Inpi. E ainda que a Anvisa não tenha competência para conceder uma patente, a concessão por parte do Inpi está vinculada a sua anuência prévia. Diferente da jabuticaba, apreciada por muitos brasileiros, o artigo 229 C evoca reações de repúdio de boa parte da indústria, por criar um conflito de autoridades entre a Anvisa e o Inpi, que, na nossa visão, deveria ser o único responsável pelo exame e concessão de direitos de propriedade industrial, assim como acontece em todos os outros países do mundo, onde agências ou escritórios especializados desempenham tal função. Exemplos são o Patent and Trademark Office (PTO), dos EUA, European Patent Office (EPO), da Comunidade Européia, Instituto Mexicano de la Propriedad Industrial (Impi) e Administración Nacional de Patentes (ANP), da Argentina. Quando se defronta o artigo 229 C com o acordo Trips, o mesmo parece ter sido firmado "no fio do bigode". A introdução da anuência prévia por parte da Anvisa fere duplamente o artigo 27.1 do acordo. A inclusão do 229-C na lei trouxe consigo um quarto requisito de patenteabilidade - a controversa concessão de anuência prévia da Anvisa - além dos já previstos (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial). Isso viola o disposto na primeira parte do artigo 27.1 do Trips, além dos elencados no artigo 8º da lei 9.279/96.

Em nossa visão, o Inpi deveria ser o único responsável pelo exame e concessão de direitos de propriedade industrial

Além disso, a aplicação desse quarto requisito de patenteabilidade somente aos produtos e processos farmacêuticos também viola a segunda parte do artigo 27.1, pois determina tratamento diferenciado em função do setor tecnológico. Outro fato tão curioso quanto a jabuticaba não ter se expandido nem mesmo para os países vizinhos -(há quem diga que já comeu jabuticaba no Paraguai, Uruguai e Argentina - é que o artigo 229 C encontra-se dentro do capítulo das disposições transitórias e finais da Lei de Propriedade Industrial (9.279/96). Isso significa que o citado artigo deveria regular apenas as situações temporárias criadas pelo novo ordenamento jurídico. No entanto, é usado pela Anvisa para regular situações definitivas. É inegável que a criação da Anvisa foi uma conquista para o país, e não se pode duvidar da importância da Agência na proteção da saúde da população por meio do controle sanitário da produção e comercialização de medicamentos, entre outros produtos. Diante disso, há quem justifique a introdução do artigo 229 C na lei como uma das formas da Anvisa exercer seu papel. Mas é verdadeiro que a proteção da saúde do cidadão se dá pela concessão do registro sanitário para a comercialização do produto, que garante a qualidade do medicamento que será utilizado pela população, e não pela anuência prévia da patente. É interessante verificar que a lei que criou a Anvisa (9.872/99), traz em 24 incisos do artigo 7 as funções e competências da Anvisa. Em nenhuma delas se encontra a revisão de processos de patente. Encontra-se, sim, o que está resumido na apresentação da agência em seu site na internet: "... proteção da saúde da população por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados". A anuência prévia é um retrocesso do processo de aprovação de patentes da indústria farmacêutica. Um desserviço à população, posto que os recursos utilizados pela Anvisa nada mais são do que dinheiro do contribuinte, que poderia ser totalmente aplicado no papel que de fato cabe à Agência: a vigilância sanitária.