Título: A esquerda do pai do capitalismo
Autor: Borges, Robinson
Fonte: Valor Econômico, 11/08/2006, Eu & Fim de Semana, p. 14

Uma revolução socialista está em curso em torno do nome de Adam Smith (1723-1790), até pouco tempo considerado o pai insuspeito do capitalismo. O movimento pela nova identidade ideológica do filósofo e economista escocês ganhou força com Gordon Brown, todo-poderoso ministro das Finanças do governo trabalhista do Reino Unido, e logo conquistou seguidores fiéis. A uma platéia de economistas internacionais, Brown semeou algumas desconfianças. "Não seria Smith autor tanto da mão invisível quanto da mão que dá uma ajudazinha?", perguntou. E, com seu humor tipicamente britânico, acrescentou: "Seria o livro 'A Teoria dos Sentimentos Morais', o doutor Jekyll, o médico da economia, e o clássico 'A Riqueza das Nações', Mr. Hyde, o monstro?"

As respostas vieram em forma de livro e revelaram uma "face invisível" de Smith. Três biografias independentes recém-lançadas discutem a ala esquerda do pensamento do filósofo, sua ressonância na política econômica e as interpretações equivocadas de suas idéias - pelos conservadores, é claro. Gavin Kennedy, autor de "Negociação sem Mistério" (Publifolha), chega a denunciar o seqüestro das teses de Adam Smith pelos capitalistas modernos em seu livro "Adam Smith's Lost Legacy" (o legado perdido de Adam Smith).

Ian McLean, autor da biografia mais polêmica, conclui que o "pai do capitalismo" era, a bem da verdade, um socialista, antes mesmo de o termo existir - e que o mais importante em suas obras não é o conceito de "mão invisível" (do mercado), mas o da "mão que ajuda" (do Estado de bem-estar social). Sua análise parte do pressuposto de que Adam Smith teria indicado muitas outras ações, além das da livre-concorrência. "Ele era a favor da redistribuição de impostos e de um papel do Estado mais justo para promover o que chamamos de serviço público: segurança, rodovias e educação", afirma McLean. "Smith entendia o serviço público no sentido moderno do termo."

A identidade redescoberta do filósofo e de sua doutrina com viés mais social estaria iluminando até as ações da esquerda moderna de Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Tony Blair (Reino Unido), Michele Bachelet (Chile) e Atal Bihari Vajpayee (Índia), observa McLean, professor da Universidade de Oxford e autor de "Adam Smith - Radical and Egalitarian" (Adam Smith radical e igualitário). Estaria se formando, assim, uma espécie de nova Terceira-via, desgastado conceito elaborado por Anthony Giddens e abraçado por Tony Blair.

"Essa leitura sobre Smith está correta. Considera um de seus aspectos mais importantes: a preocupação com os menos favorecidos. Para ele, se os pobres de uma sociedade não prosperassem, sendo bem pagos, com acesso a habitação e a educação, a sociedade, em si, não poderia prosperar", afirma James Buchan, autor de uma biografia mais pessoal do escritor, intitulada "Adam Smith and the Pursuit of Perfect Libert"" (Adam Smith e a busca da liberdade perfeita). O livro deve ser publicado no Brasil pela Editora Record.

Apesar de muitas vezes discordarem a respeito da herança de Smith e de sua aplicação política hoje, os livros formam uma espécie de escola "neosmithiana", desfazendo alguns mitos, como a atribuição a ele da expressão "mão invisível do mercado" - que aparece apenas como imagem e não como conceito - e do termo "laissez-faire", a crença de que a economia funciona melhor quando não há interferência do governo.

Reprodução Adam Smith: "Ele era a favor da redistribuição de impostos e de um papel do Estado mais justo para promover o serviço público: segurança, rodovias e educação", afirma o escritor Ian McLean Professor de lógica e filosofia moral, Adam Smith nasceu e viveu no século XVIII, conhecido como o Século das Luzes, e, ao lado de outros iluministas, defendeu a liberdade e criticou a divisão da sociedade: poderosos e privilegiados de um lado, e plebeus e sem direitos de outro. O filósofo também dizia não tolerar a tutela dos soberanos sobre as decisões dos cidadãos. Além disso, afirmava que os interesses individuais livremente desenvolvidos seriam harmonizados pela tal mão invisível e que essa sinergia seria alterada se houvesse intervenção dos governos.

Ex-jornalista do "Financial Times" e autor de "Desejo Congelado - Uma Investigação sobre o Significado do Dinheiro" (Record), Buchan afirma que o filósofo nunca disse a famigerada expressão "mão invisível do mercado". Teria escrito apenas "mão invisível" sem o adendo "do mercado". "Ele mencionou 'mão invisível' só três vezes em seus trabalhos publicados. E, em todas as menções, a frase tinha uma pequena variação de sentido", diz.

O primeiro registro surgiu com a idéia de providência, "um clichê da época, cujo significado mistura a força de Deus e as oportunidades da vida", explica. Mais tarde, no livro "A Riqueza das Nações" (1776), usou a frase para reforçar uma tese corrente entre os iluministas do século XVIII - todas as ações trazem conseqüências, mesmo que não sejam os efeitos desejados ou previstos por quem age. Essa foi a imagem que se cristalizou ao longo dos séculos: cada indivíduo "só procura seu próprio ganho", mas é como se fosse "levado por uma mão invisível para produzir um resultado que não fazia parte de sua intenção... Perseguindo seus próprios interesses, freqüentemente promove os da sociedade, com mais eficiência do que se realmente tivesse a intenção de fazê-lo", escreveu Smith no segundo capítulo do quinto volume de "A Riqueza das Nações".

De acordo com Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária do governo Lula, esse trecho denota que a mão invisível não era exatamente um argumento, mas uma metáfora para o fato de que o indivíduo sabe melhor do que o governo onde e em que investir o seu capital para maximizar o produto, e para o fenômeno de que a riqueza da sociedade se compõe da somatória das riquezas individuais. Isto é, a mão invisível apenas assinalaria que o indivíduo, ao enriquecer, também enriquece a sociedade.

Singer destaca ainda que Smith ressaltava que a metáfora da mão invisível não era infalível. Argumentava, por exemplo, que seria um aspecto aceitável restringir importações para proteger alguma indústria necessária à defesa do país. Também pode ser entendida como exceção a proposta de tributação de produtos importados na mesma proporção que os produtos nacionais que concorrem com eles no mercado interno.

O que Smith nunca teria dito, ressalta James Buchan, é que há uma força no livre mercado capaz de fazer o dinheiro se movimentar adequadamente e garantir a prosperidade sem a regulação do Estado. "Se o dinheiro se auto-regulasse, não precisaríamos de bancos centrais e não teríamos as sérias crises que temos nos mercados financeiros", afirma Buchan, numa clara alfinetada a Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Admirador confesso de Adam Smith, Greenspan sempre elogiou o conceito de "mão invisível (do mercado)". Na Escócia, chegou a dizer que Smith teria antecipado os benefícios do moderno mercado financeiro internacional, da estabilidade da economia e do crescimento do livre mercado capitalista.

Para Buchan, Greenspan é apenas mais um dos muitos economistas influentes do mundo político-econômico contemporâneo que não entenderam o legado de Adam Smith. "Com mais justiça, alguém poderia reivindicar que Moll Flanders, personagem do romance homônimo de Daniel Defoe, escrito em 1722, é uma importante colaboradora para a estabilidade do mercado, uma vez que ela também usou a expressão 'mão invisível' antes de Smith", provoca Buchan.

Como numa brincadeira de telefone sem fio, Ian McLean, de Oxford, observa que Adam Smith também nunca disse ou escreveu o termo laissez-faire, que prega a mínima, ou nenhuma, interferência do governo no comércio. "O conceito foi inventado por fisiocratas [que sustentavam ser a terra a única verdadeira fonte de riqueza, e defendia o liberalismo econômico francês]. Quando Smith visitou a França, entre 1764 e 1766, conviveu com muitos deles, alguns dos quais admirava, mas a outros ele criticava bastante."

De fato, Smith atacou os fisiocratas ao demonstrar que a terra não era a principal fonte de valorização. Pelo contrário: considerava que a origem da riqueza estava no trabalho. Enfatizava também a possibilidade de aumento da produção por meio da divisão trabalhista e criticava as restrições governamentais arbitrárias que impediam a expansão industrial. Sua tese sobre o impacto da divisão do trabalho inspirou o pensamento socialista de Karl Marx (1818-1883) e de muitos outros discípulos. "Os trabalhadores desejam ganhar o máximo, os patrões pagar o mínimo. Os primeiros procuram associar-se para elevar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-lo. Não é difícil prever qual das duas partes normalmente leva vantagem na disputa", escreveu Smith.

A perspectiva do laissez-faire, segundo McLean, também perde força porque é inconsistente com o todo de "A Teoria dos Sentimentos Morais" (1759), em que Smith prega a filosofia social do igualitarismo, e com o quinto volume de "A Riqueza das Nações", no qual aborda o adequado papel dos governos. "Os esquerdistas estão abraçando as teses de Smith agora porque elas estão se tornando mais conhecidas", diz McLean.

Paul Singer concorda. Para ele - que integra a equipe que elabora o programa de governo do candidato Lula - é preciso entender que Smith vivia num período de comércio controlado por cartéis locais e que reclamava contra um Estado monárquico, pré-Revolução Francesa. "Sua queixa era contra o desperdício, o despotismo e o abuso da época. Sua observação contra a intervenção do Estado no comércio tinha como enfoque o governo inglês, absolutamente monopolista", afirma.

Quando Smith ataca o papel do Estado, ele estaria, na verdade, reprovando a busca de ganhos improdutivos e a dissipação de rendas por meio da competição dos agentes por monopólio ou proteção legais. "Essas idéias contra o livre mercado só foram elaboradas porque Smith viveu sob uma Igreja e um Estado fracos. Se não fosse esse o contexto, não teria sido tão enfático", diz McLean.

Tanto o conceito de mão invisível quanto o de laissez-faire foram resgatados nos anos 1970, segundo os autores dos livros, fora de contexto e a serviço dos neoconservadores - Margaret Thatcher e Ronald Reagan (1911-2004) -, advogados de um amplo projeto neoliberal. Para James Buchan, a atribuição dessas frases-conceito a Adam Smith foi feita porque essas pessoas buscavam numa autoridade intelectual do passado o apoio para suas ações no presente.

Os liberais contemporâneos, na opinião de Paul Singer, de fato, erram ao usar os argumentos de Smith para atacar Estados democráticos, de bem-estar social, que funcionam muito bem como distribuidores de renda.

"Esse tipo de respaldo que os liberais funciona também para os muçulmanos, que buscam suporte no Alcorão para suas ações, ou para os cristãos, que se inspiram na Bíblia", polemiza Buchan. Nesse caso, estende a crítica ao ministro Brown, que estaria tentando construir suas credenciais intelectuais em cima de Smith para concorrer ao posto de Tony Blair, em Downing Street.

O professor de Oxford é mais moderado - afinal, é amigo de Gordon Brown, que prefaciou seu livro. Ele afirma que Smith tinha uma consciência social extraordinária - típica dos progressistas modernos. Para ele, essa tese se evidencia mais em seu primeiro grande livro, "A Teoria dos Sentimentos Morais" do que no clássico "A Riqueza das Nações". Essa ambigüidade entre os dois títulos não é nova. Quem mais teria admiradores tão improváveis e antagônicos quanto Marx e Thatcher?

O contraste entre os dois livros mais célebres de Smith ocorre porque na obra de 1759, o foco do filósofo está na simpatia como motivação humana fundamental, isto é, um princípio da natureza que leva a entrar na situação dos outros e compartilhar suas paixões. Já na obra posterior, o ponto central é o papel essencial do auto-interesse, o que muitos interpretam como uma apologia do individualismo e do egoísmo. A distância entre os dois livros foi o motivo até de um forte debate na escola de história alemã, que batizou a discussão de "O Problema de Adam Smith".

De um lado estariam os estudiosos que defendem "A Teoria dos Sentimentos Morais" como uma obra romântica de um jovem escritor, que se transformaria, mais tarde, num economista genial com a publicação de "A Riqueza das Nações". De outro lado estariam pensadores mais progressistas, que argumentam que o segundo livro de Smith deve ser compreendido à luz filosófica do primeiro, o que explicaria de forma mais ampla o surgimento da economia.

"Há alguns aspectos que permitem à direita moderna reivindicar Smith legitimamente como sendo de sua linha de pensamento", pondera McLean. "Mas ao considerarmos a obra completa do autor, só podemos conceitua-lo como um filósofo esquerdista."

As distorções a respeito da obra de Smith remetem ao lançamento de "A Riqueza das Nações", no fim do século XVIII. A elite européia, na época, o reverenciou pela qualidade inovadora dos conceitos ali apresentados. Suas teses contrariavam o pensamento hegemônico na Europa: o mercantilismo. Ao sistematizar seus argumentos com talento incomparável, Smith fundou a economia como uma das ciências humanas. Mas a Revolução Francesa (1789), que ocorreu pouco depois da publicação de "A Riqueza das Nações", fez com que as idéias com relação à igualdade entre pobres e ricos fossem dissipadas e uma controvérsia em torno da obra surgisse.

Havia um temor de que o pensamento revolucionário francês contaminasse a Grã-Bretanha, o que fez com que a tese do livre mercado se sobressaísse sobre as demais. As idéias liberais também foram bem absorvidas pela burguesia que emergia com força total por causa da Revolução Industrial. Para os proprietários das fábricas, a liberdade de comércio era um objetivo importante, pois viabilizava a conquista de mercados em outros países.

O paradoxo em torno de Smith, no entanto, não significa que a provocação de Gordon Brown quanto à possível esquizofrenia de suas obras seja pertinente, avalia MacLean. O erro dos estudiosos do filósofo é avaliar que seus dois livros são simplesmente normativos. Para McLean, os textos são analíticos: buscam explicações empíricas para os fenômenos.

"Smith está sendo descoberto como um economista muito mais complexo do que apenas como o pai do capitalismo. As pessoas estão aceitando agora que essa idéia de mentor do livre mercado não é uma visão histórica correta. O que está ajudando a ter um grande revival no interesse por Smith é sua contribuição filosófica", acredita Buchan. "Mas o desvirtuamento de sua obra não foi feito por nenhuma mão invisível."