Título: Cuba e as ambiguidades da política externa brasileira
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2012, Opinião, p. A8

A concessão de visto de entrada no Brasil para a dissidente cubana Yoani Sanchez mostra como o governo, quando motivado, pode reduzir a ambiguidade que marca a diplomacia nacional em matéria de direitos humanos. Se, além da tácita aprovação do governo cubano para o visto, o governo brasileiro tiver conseguido a inédita autorização para saída de Yoani do país, o governo brasileiro terá demonstrado na prática seu argumento sobre a superioridade das negociações discretas em lugar da pressão escancarada sobre governos "amigos" que não respeitam as liberdades individuais.

Com o visto a Yoani, o governo claramente busca desocupar o palco durante a visita da presidente Dilma Rousseff a Cuba, para que possa brilhar o roteiro econômico programado para a viagem: empréstimos para obras de infra-estrutura a cargo de uma grande empresa brasileira, linhas de crédito para compra de alimentos "made in Brasil" pelos cubanos, apoio do Palácio do Planalto às pálidas reformas econômicas liberalizantes prometidas pela administração de Raúl Castro.

Sem declarações infelizes sobre dissidentes, como a comparação com criminosos comuns feitas no governo passado, e com o sinal verde para a visita de uma das dissidentes cubanas mais populares no exterior, Dilma imagina equilibrar-se entre a tradicional política de não intervenção em assuntos internos defendida pelo Itamaraty e a necessidade de dar uma resposta aos que cobram seu anunciado compromisso com os direitos humanos - assunto que quer evitar durante a visita.

Não é apenas um tema político; também está em jogo a marca Brasil, em um mundo onde grandes empresas brasileiras com atuação global começam a sentir a pressão de organizações não governamentais, que as acusam de desrespeito a direitos humanos ou ao meio ambiente.

O esforço para constranger empresas de ação mundial com etiquetas pouco lisonjeiras atende a preocupações legítimas da chamada sociedade civil internacional, mas também serve a interesses dos competidores internacionais das mesmas companhias, em sua disputa pela simpatia dos políticos e da opinião pública. Pintar a imagem do Brasil com cores desfavoráveis facilita o trabalho de quem procura apontar o setor privado brasileiro como influência nociva - seja ao meio ambiente, seja aos direitos humanos, seja a alguma outra grande causa internacional.

A surpresa com que foi recebido o visto a Yoani revela, por um lado, desconhecimento da ação do Itamaraty, que não tinha justificativa para fazer o contrário, e também não negou visto a outro dissidente famoso, o Dalai Lama, apesar de gigantesca pressão contrária da diplomacia chinesa. Não havia razão para negar a entrada de Yoani como não havia contra o líder religioso, que, aliás, passou sem alarido por território brasileiro no ano passado. O assombro com o visto à cubana mostra como ainda é ambígua a imagem do governo em matéria de direitos humanos, até dentro do Brasil, quando se trata de questões delicadas para governos aliados.

Dilma não deve dar destaque à questão dos direitos humanos, nem pretende receber em Havana os grupos de dissidentes que pediram um encontro com ela. O governo argumenta que, dessa forma, mantém boas relações com o governo na ilha e pode exercer com mais eficiência uma influência benigna na liberalização do modelo cubano. A presidente não esconde que esse raciocínio não está isento de simpatia pelos governantes cubanos, especialmente pelo ditador aposentado Fidel Castro, a quem ela pediu audiência.

Queira ou não Dilma não escapará do tema dos direitos humanos, que faz parte da polêmica ideológica em torno da ilha e de seus dirigentes. Cuba é apenas o exemplo mais vistoso de um dilema que o governo brasileiro já enfrenta e enfrentará com frequência crescente ao apoiar a ação de empresas brasileiras em países com ditaduras escancaradas e longevas, como a de Cuba. Se não deseja firmar uma imagem de país sem valores essenciais a não ser o desejo de expansão comercial, não bastará ao Brasil conceder vistos diplomáticos a estrangeiros em desgraça ou acusar de hipocrisia e seletividade as grandes potências que endossam as críticas aos parceiros do Brasil no mundo.