Título: O tango do crioulo doido
Autor: Giannetti da Fonseca, Roberto
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2012, Opinião, p. A9

Talvez os leitores argentinos, e nem mesmo os brasileiros mais jovens, tenham entendido o título deste artigo como a analogia que faço a um famoso sucesso musical no Brasil do final dos anos 60. O "Samba do Crioulo Doido" é uma paródia composta em 1968 pelo escritor e jornalista Sérgio Porto, sob pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, que pelo sucesso então alcançado, cunhou uma expressão muito comum até hoje no vocabulário popular, para se referir a coisas sem sentido, confusas, mirabolantes, estapafúrdias, sem nexo.

A analogia que faço ao Brasil de 30 ou 40 anos atrás é porque naquela época vivemos crises sequenciais de escassez de divisas cambiais e de elevada inflação, o que levava os governantes de então a lançar medidas heterodoxas, muitas vezes conflitantes entre si, e sempre com alto grau de intervenção do Estado na economia. Entre elas, recordamos o Programa de Comércio Exterior, que cada empresa pública ou privada brasileira era obrigada a apresentar anualmente para a avaliação da Cacex (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil), que por sua vez limitava as importações ao absolutamente essencial e ao que não houvesse similar nacional. Tudo mais seria proibido. A justificativa política para tal extremo era a absoluta escassez de divisas externas para o país fazer frente aos seus compromissos externos de serviço da dívida, de importação de petróleo e demais produtos, e ainda demais serviços de turismo, seguros, royalties, dividendos, etc.

As importações eram autorizadas uma a uma, por meio de Licenças de Importação, liberadas a conta gota pelas autoridades de plantão, sob a vigilância cerrada de um nervoso Banco Central do Brasil. Somente em 1990, a partir do tratamento de choque do Plano Collor e depois do Plano Real, é que essas medidas foram sendo revogadas e o Brasil evoluiu gradualmente na década de 90 para um regime de livre importação e de câmbio flutuante, ainda que com alguns vestígios burocráticos e legais daquela fase, mas infinitamente mais livre do que era na época do "Samba do Crioulo Doido".

Vemos agora o governo argentino adotando políticas de importação semelhantes àquelas da época da Cacex, e nos perguntamos em primeiro lugar: estará a Argentina à beira de um novo colapso cambial? Se a resposta for não, então qual o sentido dessas novas medidas de "Declaración Juramentada de Importaciones"? Se a resposta for sim ou um hesitante talvez, então devemos ser mais uma vez tolerantes com nossos hermanos, e procurar mitigar os efeitos dessas medidas no âmbito do Mercosul. De fato, o mar não está para peixe em 2012: preços de commodities agrícolas em baixa, quebra de cerca de 20% nas safras de trigo, soja, e milho por conta da La Niña, crise financeira internacional, sem a perspectiva de um tostão de crédito novo para a Argentina, e uma tradição portenha de fuga de dólares que precipita as crises cambiais, como se fosse uma autoprofecia.

Isto posto, cabe refletir como poderíamos preservar um mínimo de dignidade moral e jurídica para o Mercosul diante dessas medidas de exceção? Em primeiro lugar, acordando um "waiver" (perdão) antecipado, mas não incondicional. Medidas de exceção têm que ser temporárias e ter prazo de vigência definido (dois anos?). Outra condição que julgo imprescindível seria a de exclusão das importações em moeda local, ou seja, pagos em pesos sem uso das escassas divisas em dólares no âmbito do SML (Sistema de Pagamentos em Moeda Local, que Brasil e Argentina estabeleceram entre si anos atrás, e até o momento foi pouquíssimo usado). Dessa forma, o Mercosul seria relativamente preservado, sem explícita quebra de contrato, ou litígio na OMC e no próprio Mercosul.

Sendo o Brasil superavitário atualmente no comércio bilateral com a Argentina, cremos que o Banco Central do Brasil poderia ficar um pouco desconfortável com a contínua acumulação de pesos em suas reservas (como se o dólar também hoje em dia não causasse apreensões após a farra de expansão monetária que os EUA têm promovido desde 2008). A sugestão que pode ser avaliada seria a de transferir tais reservas em pesos para o Fundo Soberano (que anda sub-utilizado desde sua criação), sob a gestão do Tesouro Nacional, o qual disponibilizaria estes pesos para duas possíveis finalidades: 1) capitalização (equity) de empresas brasileiras com investimentos de expansão ou novas aquisições na Argentina, ou 2) financiamento de médio e longo prazo em pesos pelo BNDES para empresas argentinas e brasileiras na Argentina adquirirem bens e serviços brasileiros para suas atividades locais. Assim, estaríamos mitigando o risco de uma eventual desvalorização da moeda argentina, e promovendo de fato uma maior integração regional, em momento da história no qual a própria União Europeia tem um destino incerto. Dizem que tango é uma música para sempre se dançar a dois: pois então dancemos sem hesitação, e com certa nostalgia, o "Tango do Crioulo Doido".

Roberto Giannetti da Fonseca é economista e empresário, presidente da Kaduna Consultoria, e diretor-titular de Relações Internacionais e de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).