Título: Anões, sanguessugas e Orçamento impositivo
Autor: Pires, Valdemir
Fonte: Valor Econômico, 07/08/2006, Opinião, p. A12

"O mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis." - Tácito

O aparato técnico e legal de suporte à gestão orçamentária no Brasil melhorou estrondosamente desde, aproximadamente, meados da década de 1980, atingindo hoje padrões internacionais de qualidade. Além disso, segue sendo aperfeiçoado e crescentemente amparado pela incorporação de técnicos muito bem preparados, que figuram entre os de maior competência no interior da administração pública do país.

Essa conquista, obtida com uma rapidez impressionante quando comparada a outras experiências históricas - e que custou muito para ser implementada e outro tanto a cada ano para ser mantida - não é, entretanto, suficiente para que o Orçamento público federal seja planejado, executado e avaliado como deveria, ou seja, com transparência, espírito público (perspectiva republicana), seriedade administrativa, competência decisória e compromisso democrático.

As causas desse descompasso, entre a capacidade potencial de boa gestão orçamentária e a efetiva prática que se vê (eivada de ineficiência e corrupção), estão enraizadas no pouco caso com que é tratado todo o processo orçamentário no país, pelos governantes, pelos parlamentares e pela sociedade civil em geral. O Orçamento público, que pertence a todos, parece não ser de ninguém, sempre surgindo aqui, ali e acolá uns e outros espertos o suficiente para se aproveitar dessa dadivosa terra de ninguém.

Todos os anos centenas, se não milhares, de pareceres de Tribunais de Contas apontando irregularidades são engavetados, rejeitados e até ridicularizados, levando alguns a alcunhar essas cortes de "tribunais de faz-de-conta".

De tempos em tempos estouram escândalos de grande magnitude, provocando indignação generalizada na opinião pública, com conseqüentes medidas drásticas (principalmente legislativas) e punições "exemplares". Advém, então, uma sensação coletiva de que dali para diante o mal não persistirá. Foi assim ao término da CPI do Orçamento, que em 1993 pôs para correr os então cognominados "anões do Orçamento" (os parlamentares João Alves, Ibsen Pinheiro, José Geraldo Ribeiro, Genebaldo Correia, Manoel Moreira, Ricardo Fiúza e Raquel Cândido).

-------------------------------------------------------------------------------- Para o Orçamento deixar de ser ficção no Brasil, num campo de atuação vital, é preciso mais do que mudanças nas leis --------------------------------------------------------------------------------

Treze anos depois, ainda fresco, novo escândalo: a Máfia das Sanguessugas. Outra vez, parlamentares, que têm entre as suas mais nobres missões a de fiscalizar a execução orçamentária, depois de aprovar a proposta anual do Poder Executivo, são flagrados fazendo uso de expedientes previstos na própria rotina de destinação e liberação de recursos para o próprio enriquecimento. E agora não são apenas sete anões; parece que o número dos envolvidos ultrapassará o dobro dos que Ali Babá teve que enfrentar.

Enquanto isso, os senadores aprovam proposta de Antonio Carlos Magalhães de Orçamento impositivo. Ou seja, aprovam nada mais nada menos do que o aumento do poder do Congresso sobre o destino do dinheiro público. Se o dispositivo for aprovado também na Câmara dos Deputados, o que os parlamentares passarão a decidir não será mais o teto de gastos com cada uma das rubricas orçamentárias propostas pelo Poder Executivo, mas sim o valor exato a ser despendido (nem mais, nem menos).

Justifica a proposta a afirmativa, verdadeira, de que o Executivo não cumpre o que propõe e, assim, desobedece a decisão soberana do povo, tomada por meio de seus representantes legítimos. Mas esquece-se que: 1) muitas são as situações em que há justificativas aceitáveis para que assim seja (por exemplo, a frustração de receitas, a ocorrência de despesas imprevistas ou imprevisíveis); 2) essa discussão é antiga e tempos já houve em que a elaboração orçamentária cabia ao Congresso; 3) o próprio Congresso Nacional está em débito com a nação no que diz respeito à seriedade no trato com assuntos orçamentários, por pelo menos três motivos, a saber: a) não aprovou em tempo hábil o Orçamento deste ano, b) está atrasado em sua tarefa de aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano que vem, c) até agora não aprovou a nova lei prevista na Constituição de 1988 para regulamentar as finanças públicas, ainda sob a égide da quarentona Lei 4.320/64 (que foi revolucionária no momento em que entrou em vigor e ainda contém muitos aspectos positivos, mas carece de atualização para além da que foi promovida pela Lei Complementar 101/00 - Lei de Responsabilidade Fiscal).

Para que o Orçamento público deixe de ser ficção no Brasil, elevando a qualidade técnica e política dos governos num campo de atuação vital (gestão dos recursos públicos, sempre escassos), é preciso mais do que mudanças nas leis. É preciso algo muito mais difícil de ser obtido: comportamento adequado (para dizer o mínimo) dos legisladores. O que remete o problema não só para os eleitores (que escolhem os legisladores), mas também para os candidatos e para os partidos políticos, pois além de ser necessário que os eleitores saibam votar, e que o façam com responsabilidade, é fundamental que haja em contrapartida candidatos com um mínimo de qualidade.

Não só no momento eleitoral deve haver a possibilidade de punir parlamentares omissos em seu dever de apreciar, aprovar e fiscalizar a execução do Orçamento, negando-lhes votos. Se o Poder Executivo não cumpre suas obrigações neste campo, muitas e severas podem ser as penas, ampliadas e intensificadas a partir da Lei de Responsabilidade Fiscal. Não deveria ser diferente para o Poder Legislativo. Quando este deixa de aprovar o Orçamento, nega não ao Executivo, mas a toda a nação, um dos mais importantes instrumentos de decisão previstos numa democracia representativa: a lei que estabelece as prioridades para as despesas públicas, cujo descumprimento é tão grave quanto a inexistência, por não ter sido aprovada.

Valdemir Pires é economista, professor de Finanças Públicas do Departamento de Administração Pública da UNESP - Araraquara SP, autor do livro "Orçamento Participativo: o que é, para que serve, como se faz" (Ed. Manole, 2001), E-mail: vapires@fclar.unesp.br.