Título: Democracia representativa e Orçamento impositivo
Autor: Werlang, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 07/08/2006, Brasil, p. A13

A determinação da distribuição dos recursos arrecadados é a atividade mais importante de um governo. A democracia representativa é aquela em que cada pessoa faz-se representar através de um (ou mais) membro(s) no Congresso (no caso, dois, um na Câmara dos Deputados, outro no Senado) para que decidam sobre as leis que serão aplicadas ao país. É interessante uma digressão aqui. A democracia originalmente era direta. O modelo das cidades-Estado gregas, e mais especificamente de Atenas após a reforma de Sólon, que ocorreu em 594 a.C., consistia na participação diária de todos os cidadãos do sexo masculino acima de uma certa idade numa assembléia. Todos os assuntos da cidade eram discutidos neste fórum. Segundo estimativas de Finley (1977), uma reunião destas em Atenas poderia ter a participação de cerca de 40 a 45 mil indivíduos. Mas, o mais interessante, cada pessoa poderia apresentar moções, que seriam ou não decididas pela maioria. Tal procedimento não era prático. Funcionou durante algum tempo, enquanto as comunidades independentes eram pequenas. Contudo, com Alexandre da Macedônia (morreu em 323 a.C.), que conquistou as cidades-Estado gregas, este modelo mostrou-se totalmente incapaz de responder com rapidez aos desafios de enfrentar uma nação maior e mais organizada. No entanto, a democracia foi aperfeiçoada por Roma, que acabou por tornar-se hegemônica por um período muito maior. A idéia, que foi sendo desenvolvida desde 507 a. C., era simples: os cidadãos não votariam diretamente, mas escolheriam um representante que decidiria em seu nome. Este grupo de representantes era bem menor, e tornava as discussões mais rápidas e menos sujeitas ao "populismo" do momento. Este modelo persistiu até César (declarado ditador vitalício em 44 a.C.), e mesmo durante o império de forma parcial.

A democracia representativa moderna é um sistema que tem se mostrado muito eficiente. Em essência, todos os cidadãos com idade de voto escolhem um número bem menor de pessoas, os deputados e senadores, que tomarão as decisões sobre as leis do país. Neste sentido, a lei que decide o Orçamento é a expressão máxima da democracia representativa. O Orçamento reflete o desejo dos milhões de cidadãos votantes sobre como devem ser distribuídos os recursos arrecadados pelos tributos.

É, portanto, fundamental que o Orçamento seja muito discutido, para que os diversos grupos da sociedade, através de seus representantes eleitos para o Congresso, possam assegurar-se que seus anseios foram atendidos na medida do que foi possível, tendo em vista que o total dos recursos é limitado e que outros grupos da sociedade têm necessidades distintas.

Infelizmente, em nosso país não é isso o que acontece. O Orçamento é, de fato, uma lei bastante discutida no Congresso, inclusive em duas etapas. Há a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que determina padrões gerais para o Orçamento propriamente dito, que é votado na lei orçamentária. Contudo, o Orçamento que é votado, e que é a síntese dos desejos da população brasileira, não é aquele que é executado!

-------------------------------------------------------------------------------- Atualmente, o Orçamento está determinado em quase sua totalidade pelos desejos e por necessidades de gerações passadas, não da atualidade --------------------------------------------------------------------------------

A razão é a seguinte. Por algum motivo, deu-se no nosso país a interpretação que o Orçamento é uma autorização para gastos. Não uma obrigatoriedade. Assim, quando os acordos para a votação do Orçamento chegam à conclusão que uma obra deve ser feita em uma cidade e que outro tanto deve ser despendido com pesquisa agrícola, e outro tanto ainda com o Bolsa Família, não é isso que o governo executará ao longo do ano. Ou seja, a obra poderá não ser feita, ou a pesquisa não financiada, e poderia haver menos recursos para o Bolsa Família. Isto porque o Executivo pode cortar gastos aprovados no Orçamento a seu bel prazer. O procedimento adotado é o de contingenciamento das despesas.

Como resultado prático deste procedimento orçamentário, muitas distorções são criadas. Em primeiro lugar, do lado do Congresso, que vota o Orçamento, há um incentivo em exagerar o valor das emendas. Como o(a) deputado(a) ou senador(a) sabe que os projetos que defende estão tendo apenas um teto aprovado no Orçamento, o objetivo é ter o maior teto possível, já que ele será cortado. Já que as receitas e despesas têm que estar em linha com os recursos disponíveis, isto leva sempre o Congresso a tentar aumentar as estimativas de receitas. Em segundo lugar, sabendo que o Congresso comporta-se desta forma, as estimativas de receitas são feitas pelo Executivo de forma sempre conservadora (em geral, só há "surpresas" na arrecadação para cima).

Em terceiro lugar, o Congresso, com temor de ter despesas (que foram legitimamente aprovadas) cortadas, passa a querer "carimbar" receitas. Exemplos disto são muitos, como os gastos com educação e a emenda constitucional que determina gastos com saúde. E a todo instante aparece uma nova proposta desta no Congresso, uma vez que a interpretação também em voga em nosso país é que estas despesas que são oriundas de direcionamento específico de um imposto ou contribuição não podem ser contingenciadas. Por este motivo há muito pouca margem de manobra no Orçamento brasileiro. Afinal, só se a receita estiver garantida é que pode-se considerar que a obra, ou o gasto, será realizada. Ocorre que a generalização destes procedimentos "engessa" totalmente o Orçamento. Uma das razões do Orçamento ser votado todos os anos é exatamente para adaptar-se aos novos anseios da sociedade. Isto é cada vez menos possível em nosso país. Hoje o Orçamento está determinado em sua quase totalidade por desejos e necessidades de gerações passadas de brasileiros, não da atualidade.

Em quarto lugar, o contingenciamento dá ao Executivo um poder enorme de influência sobre o Legislativo. Isto porque um parlamentar que teve sua emenda aprovada, mas que foi cortada, pode tê-la liberada. Assim, a decisão final sobre os gastos do governo sai das mãos daqueles que têm a representação popular para fazê-lo, os congressistas, e passa a ser determinada de forma centralizada pelo Executivo.

Em suma, o processo orçamentário ora existente é extremamente ineficiente, e causa muitas distorções. Desta maneira, é muito bem-vinda a discussão sobre o Orçamento impositivo. Orçamento impositivo quer dizer que tudo o que foi aprovado tem que ser gasto obrigatoriamente.

É claro, uma aplicação imediata de um Orçamento totalmente impositivo poderia gerar problemas, já que há o hábito de conviver com a situação atual. Dessa forma, o ideal seria adotá-lo aos poucos. Por exemplo, ele poderia ser implantado em cinco anos. No primeiro ano, o gasto mínimo obrigatório seria de 20% do valor aprovado no Orçamento. No segundo ano, 40%, e assim por diante até o quinto ano. Para respeitar a hierarquia das leis, tal deveria ser uma emenda constitucional, ou pelo menos lei complementar. Esta é uma mudança muito profunda de relacionamento Executivo-Legislativo. Mas é um avanço que a democracia representativa requer.