Título: O desconcertante novo sócio do Mercosul
Autor: Léo, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2006, Brasil, p. A2

As intrigantes ações do sócio recém-chegado ao Mercosul, o venezuelano Hugo Chávez, preocupam seus vizinhos. Isso ficou claro pelo tom enfático de um dos maiores entusiastas da adesão da Venezuela, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, ao discursar após receber de Chávez a comenda do Colar do Libertador, na quarta-feira, um dia depois da cerimônia que incorporou a Venezuela ao bloco sul-americano. Kirchner fez questão de listar compromissos democráticos e pacíficos do Mercosul, ao qual estão obrigados todos os sócios.

"São compromissos do Mercosul evitar corridas armamentistas ou opções violentas de soluções de conflitos, assim como apoiar, nos fóruns multilaterais de que participamos, o respeito pelos acordos internacionais orientados a promover o uso pacífico da energia nuclear e sua não proliferação", discursou Kirchner, na Assembléia Nacional venezuelana, ao relatar a responsabilidade assumida pela Venezuela com a carteirinha de sócio do Mercosul.

O presidente argentino, ao estender por um dia sua visita a Caracas, deixou pública sua gratidão a Chávez, que lhe vem comprando alguns bilhões em títulos da dívida argentina, com lucros para o Tesouro venezuelano. Com o discurso no Parlamento, também explicitou a apreensão com a política internacional do novo sócio, que, dias antes, visitou o Irã, tem feito inflamados discursos em favor da Coréia do Norte, negociou com a Rússia a instalação de uma fábrica de fuzis automáticos em solo venezuelano e não esconde sua ambição de fortalecer o poderio militar do país que dirige, e de onde freqüentemente dispara declarações bombásticas contra chefes de Estado de países vizinhos.

Contra as expectativas negativas, porém, Chávez e seus diplomatas têm se comportado com pragmatismo em seus primeiros passos no Mercosul. As propostas levadas pelos emissários venezuelanos às reuniões preparatórias para a cúpula presidencial em julho são classificadas de "construtivas" pelos diplomatas dos outros países. Chávez, que já lançou declarações atravessadas ao vizinho Álvaro Uribe, da Colômbia, e aproveitou o acordo de livre comércio entre os colombianos e os EUA como pretexto para abandonar a Comunidade Andina das Nações, inaugurou ontem um gasoduto entre os dois países, ao lado do mesmo Uribe, a quem chamou de "irmão".

O venezuelano confirmou, aliás, a ida à posse de Uribe, reeleito em maio. E anunciou que negociará... um tratado de livre comércio com a Colômbia, para não garantir aos produtores da Venezuela as vantagens da Comunidade Andina.

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Como integrar a Venezuela às negociações internacionais de comércio do Mercosul é assunto ainda não decidido, que fará parte da agenda dos coordenadores das negociações, do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, em uma reunião, amanhã, em Buenos Aires. O coordenador brasileiro, embaixador Régis Arslanian, vai apresentar uma proposta brasileira de retomada das negociações com a União Européia, como parte de um "programa de trabalho" a ser executado no segundo semestre, quando o Brasil assume a presidência temporária do bloco.

Não haverá, na mesa, nenhuma sugestão de negociações para acordo semelhante com os Estados Unidos. Arslanian garante que não há nenhum interesse deliberado de evitar um acordo com os americanos. Simplesmente, já foi entregue ao governo Bush uma proposta de acordo de livre comércio entre o Mercosul e os EUA, com a sugestão de uma reunião para discutir como avançar nesse tema "e Washington não deu nenhuma resposta", diz Arslanian.

A questão, diz o embaixador brasileiro, é que, enquanto os europeus aceitam limitar as negociações à derrubada de barreiras comerciais ao mercado entre os dois blocos, os Estados Unidos relegam essa discussão de acesso a mercados a um segundo plano. Arslanian lembra que os interesses americanos se concentram na definição de normas, como legislações de proteção à propriedade intelectual.

Washington pede prazos mais longos e regras mais rígidas para patentes, de maneira a estender os lucros de empresas farmacêuticas, quer regras de proteção a investimentos que permitirão a investidores privados contestarem políticas de governo em tribunais internacionais, e põem ênfase na liberalização de serviços, para que, por exemplo, empresas possam prestar serviços de telefonia sem necessidade de instalações no país. Diplomatas críticos ao Planalto, como Rubens Barbosa e Rubens Ricupero reconheceram publicamente, em artigos recentes, que essas demandas tornam indesejável um acordo com os EUA, nos moldes em que deseja o governo Bush, lembra Arslanian.

O diplomata informa que vai propor aos sócios do Mercosul a fixação de datas para orientar as negociações em curso, especialmente as da União Européia, que, acredita ele (com um otimismo pouco compartilhado em Brasília e Bruxelas), podem ganhar novo fôlego à medida que caminham as difíceis discussões na Organização Mundial do Comércio. Na lista de prioridades está ainda um acordo de livre comércio com os países árabes, do Conselho de Cooperação do Golfo, e acordos de abertura comercial com a Índia e a África do Sul.

Os diplomatas decidirão como integrar os venezuelanos em todas essas discussões. A Venezuela, apesar dos discursos de seu comandante-presidente, quer melhorar o clima nas relações com os Estados Unidos, segundo informa, na edição deste mês da conceituada "Foreign Affairs", o diplomata Bernardo Alvarez Herrera. Afinal, segundo Herrera, a Venezuela é o segundo maior parceiro comercial dos EUA no continente, atrás somente do México, e, com um comércio de US$ 39 bilhões em 2005, foi o 13º parceiro global dos americanos. Herrera não esclarece como compatibilizar isso com as agressivas diatribes do presidente venezuelano, mas fala com autoridade. A autoridade de embaixador de Chávez. Em Washington.