Título: Mercado já cresce com qualidade, diz Ramos, do Ipea
Autor: Salgado, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2006, Brasil, p. A3

O economista Lauro Ramos, coordenador de Estudos da Economia do Trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), acredita que ainda em 2006, se a economia continuar crescendo, o país pode viver um novo momento no mercado de trabalho. Nesta "etapa", emprego e ganho de renda evoluiriam juntos. "É a interação entre os dois que pode provocar e sustentar um círculo virtuoso no mercado de trabalho. Faz tempo que não vemos esses dois indicadores crescerem de forma continuada", explica Ramos. E ele espera aumento de vagas para funções mais qualificadas.

Nos últimos anos, diz Ramos, ocorreu um perverso movimento, no qual o aumento da escolaridade média da população nem sempre se traduziu em salários também proporcionalmente maiores. Foi justamente a maior oferta de mão-de-obra escolarizada que reduziu o "prêmio" pago por anos a mais de estudo. Reverter esse movimento e alcançar uma queda de desigualdade onde os salários mais altos também subam (ainda que em menor percentual do que as menores remunerações) depende do país crescer de forma contínua por muitos anos, diz ele. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Valor.

Valor: O que tem ocorrido com a renda do trabalho nos últimos anos?

Lauro Ramos: O Brasil teve uma primeira recuperação do emprego em 2003, após um 2002 muito ruim. E o que ocorreu nesse período foi, basicamente, um aumento do emprego. Foi uma recuperação quantitativa, que não era apoiada em emprego de boa qualidade. E, em algum ponto, de 2005 para cá, começamos a viver um estágio diferente, no qual o crescimento da ocupação por si só perdeu fôlego. Passamos a ter, por quase 15 meses consecutivos, a geração de vagas com carteira assinada em uma magnitude maior do que os postos sem carteira. Nesse último mês houve uma ligeira quebra nessa série. E, o rendimento, em maio, cresceu 7,7% em relação a maio de 2005. Essa recuperação se dá sobre uma base fraca. Mas é melhor recuperar sobre uma base fraca do que não recuperar. Talvez a recuperação dos rendimentos nos meses mais recentes se deva a uma intensificação das horas extras que, normalmente, é um indicador antecedente de um novo ciclo de geração de vagas. Então, é razoável imaginar que voltemos a ter um crescimento do nível de ocupação e uma expansão da massa salarial que não seja puxada só pelo rendimento (como temos visto) ou só pela ocupação, como no ano passado.

Valor: O que é melhor para a evolução da massa salarial, renda ou emprego?

Ramos: No médio prazo, o crescimento da massa salarial tem de ser balanceado, não pode ser devido só a um fator: quantidade ou preço. Tem que ser uma combinação dos dois porque a interação entre os dois é que pode provocar e sustentar um círculo virtuoso no mercado de trabalho. Faz tempo que não vemos esses dois indicadores crescerem de forma continuada. Tivemos aumentos episódicos. Só assim se gera o aquecimento da demanda agregada, que cria maior demanda no mercado de trabalho, que pressiona os salários para cima e realimenta o consumo e a demanda, enfim, é o que a gente quer. É claro que para que se chegue a esse estado das artes no mercado de trabalho é preciso que isso se sustente por algum tempo.

Valor: Quais eram os tipos de vagas que estavam sendo criadas?

Ramos: Teve um crescimento forte em serviços e também o que se chama tecnicamente de "efeito trabalhador adicional". 2002 foi um ano ruim para o mercado de trabalho e o orçamento das famílias fica apertado à medida que os membros principais perdem o seu emprego ou diminuem sua remuneração. Membros da família que estavam em outras atividades são desviados para o mercado de trabalho e não são muito seletivos em relação ao tipo de emprego em que irão trabalhar. Não dá para provar por A mais B o que aconteceu, mas há evidências de que em 2003 e até algum ponto de 2004, muito do crescimento do emprego se deveu a esse deslocamento das pessoas de outras atividades para o mercado de trabalho para reforçar o orçamento familiar.

Valor: E quando isso muda?

Ramos: Em 2004, um ano bom para a economia, as coisas voltaram a se normalizar no mercado de trabalho. Normalizar não no sentido de que estejam boas, mas, no fim de 2004, o período crítico ficou para trás. A gente tem hoje um mercado em um nível bastante mais satisfatório do que em 2002 e 2003. Se for mantido o bom desempenho macroeconômico, o mercado de trabalho deve continuar melhorando qualitativamente junto com um bom desempenho quantitativo.

Valor: E qual foi a melhora qualitativa vista até agora?

Ramos: A gente não sabe até que ponto a escolaridade da força de trabalho está subindo porque realmente as ocupações requerem essa qualificação ou se é apenas uma questão de oferta porque há mais gente com mais escolaridade procurando emprego. Mas é claro que subir a escolaridade, aumentar o grau de formalização e haver uma recuperação de rendimentos, isso em conjunto, aponta para uma recuperação qualitativa.

Valor: E a renda dos mais qualificados, também cresceu? Ou só os mais pobres foram beneficiados nos últimos anos, com aumento do salário mínimo e com os programas como o Bolsa Família?

Ramos: Na medida em que as pessoas adquirem mais escolaridade, elas se tornam aptas a auferir maiores rendimentos. Isso não mudou. Mas, hoje em dia, uma pessoa com elevado grau de escolaridade pode defender um bom salário no mercado de trabalho, só que tudo indica que não será tão bom quanto o que uma pessoa com a mesma qualificação conseguiria dez anos atrás. Ou seja, os rendimentos são positivos, são apreciáveis, mas não crescem de forma tão significativa. E isso é uma das principais razões para entender porque a desigualdade de rendimentos do trabalho caiu nesse início de década.

Valor: É uma queda com características perversas, é isso?

Ramos: No fundo, o jeito de se diminuir a desigualdade é fazer com que a diferença entre os que ganham mais e os que ganham menos caía. E isso tem ocorrido, mas por conta não só do aumento do salário dos mais pobres, mas também pela queda ou aumento em menor magnitude dos que ganham mais. Para quem tem salários maiores, será cada vez mais difícil ter elevações significativas. O jeito ideal seria todo mundo ganhar, e os salários maiores teriam aumentos percentuais menores do que os demais. Não estamos nesse nirvana. As pessoas não são iguais, os incentivos têm que permanecer. Mas o Brasil tem um nível de desigualdade que se destaca no mundo inteiro. Reduzir desigualdade é um algo sempre bom, mesmo que não seja do jeito mais desejável.

Valor: O modelo de crescimento econômico baseado no maior impulso do mercado interno e também em um câmbio valorizado, influencia de que forma o mercado de trabalho brasileiro?

Ramos: Eu tendo a acreditar que o câmbio flutuante balanceia as coisas. O fato é que se o câmbio realmente ficar valorizado não é uma coisa boa para o mercado de trabalho no longo e médio prazos. O importante é um crescimento balanceado. Claro que é bom alimentar a demanda interna, afinal, é isso o que define o bem estar de um país. Agora, você manter a competitividade e seguir inserido no mercado internacional em atividades de ponta, que empregam mão-de-obra mais qualificada, é bom não só para o mercado de trabalho como para toda a economia.

Valor: Por que a ocupação sobe mais para os salários menores?

Ramos: A minha teoria é a de que há, ou já houve, muita gente passando da condição sem carteira assinada para com carteira elevando o rendimento.

Valor: E como vai se chegar a um cenário em que as pessoas contratadas no setor formal tenham rendimentos maiores do que aquelas demitidas?

Ramos: Isso leva um bom tempo. Precisa-se de um desempenho razoável sustentado por algum tempo para que se tenha um crescimento generalizado dos rendimentos, não só para os mais escolarizados, mas para os menos também, um movimento muito mais espalhado, um círculo virtuoso no mercado de trabalho.

Valor: O aumento do salário mínimo tem um alto custo para as contas públicas. Mas, sem ele, a economia teria crescido na mesma intensidade nos últimos anos?

Ramos: O ponto é o seguinte. Eu não sei se a economia teria crescido menos ou mais sem o aumento do salário mínimo. Tudo depende de como o dinheiro que foi gasto para o salário mínimo teria sido utilizado se tivesse outro destino. O governo poderia optar por investimento em infra-estrutura e talvez isso incentivasse mais a economia do que um salário mínimo maior. Mas também pode ser que o dinheiro fosse desperdiçado, mal utilizado, e nesse caso provavelmente o crescimento seria menor. Você pode usar esse dinheiro (do mínimo) para outros investimentos, outras inversões e, de repente, até ter um crescimento maior, não só de curto prazo, mas de longo prazo também.

Valor: O aumento real do salário mínimo e a expansão do Bolsa Família já chegarem a um limite?

Ramos: A questão é fiscal. Muitas pessoas estão preocupadas com isso, temos um problema sério com a Previdência. O salário mínimo afeta muito mais as contas da Previdência do que dinamiza o mercado de trabalho. Não acho que o mínimo funciona como um indicador e que o seu aumento gere salários maiores na economia como um todo. Ele pode até induzir uma informalidade maior. Mas, se a economia e o mercado de trabalho estiverem aquecidos, o aumento do mínimo é absorvido sem maiores problemas.

Valor: E para reduzir a pobreza, o que é mais eficaz, aumentar o mínimo ou ampliar o Bolsa Família?

Ramos: O melhor é fazer políticas sociais que realmente atinjam a população pobre. O salário mínimo não faz isso, atinge muita gente que não é pobre. Se o meu filho, por exemplo, arrumar um emprego como vendedor de loja para ganhar um salário mínimo, ele vai entrar para a estatística de quem ganha salário mínimo, mas, certamente, isso não vai alterar a renda per capita da família, vamos continuar em um estrato superior de rendimento. Existem vazamentos, por conta da falta de focalização. Nesse sentido, o Bolsa Família é mais eficaz.