Título: Entraves à melhoria do debate eleitoral (5)
Autor: Abrucio, Fernando Luiz
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2006, Política, p. A5

A disputa pela hegemonia política no país estrutura-se, hoje, por uma polarização radical envolvendo os dois pólos principais do sistema político, o capitaneado pelo presidente Lula e o eixo PSDB-PFL. Afora os males que o embate exagerado e estanque pode trazer para a aprovação de reformas importantes para o Brasil, a briga política entre estes grupos esconde o que eles têm de comum e, mais grave ainda, a falta de um projeto nacional articulado e claramente definido. Em outras palavras, a luta partidária entre petistas e tucanos não revela uma contraposição nítida entre duas visões de mundo bem delineadas e diferenciadas. Em vez disso, a rivalidade tem como base rixas políticas recentes, geralmente de caráter pessoal (de biografia e trajetória política) ou regional.

Eis o quinto entrave ao debate presidencial de 2006: a disputa política não está ancorada numa verdadeira oposição entre projetos nacionais bem definidos. Este obstáculo se soma aos outros quatro analisados nos artigos anteriores, a saber: 1) os problemas institucionais que enfraquecem a discussão de uma agenda legislativa nacional, por conta do papel menor dado ao pleito parlamentar (pelos eleitores e pelos próprios políticos) e em razão da coincidência espúria entre as eleições estaduais e a federal; 2) a necessidade de reformas profundas e com efeitos de longo prazo, as quais afetam fortes interesses no plano imediato - algo que só poderia ser resolvido com a adoção de medidas com aplicação gradual e com impactos ao estilo "bola de neve", afetando positivamente outros temas; 3) a baixa participação da população brasileira, em especial da chamada sociedade civil organizada, na vida política dos partidos, mesmo num período eleitoral precedido por uma enorme crise de representação; 4) e a falta de indicadores objetivos e de fácil acesso a todo eleitorado, capazes de mensurar os resultados das políticas públicas alcançados por governantes diferentes - no lugar disso, instala-se um debate dominado pelo neo-udenismo ou por falsas contraposições classistas.

A constatação de que não há projetos nacionais bem definidos nas duas principais forças políticas não quer dizer que elas não tenham tido um importante papel na produção de políticas públicas nos últimos anos. Ao contrário, os tucanos e o governo Lula foram responsáveis por diversos avanços institucionais, na criação ou na continuidade das ações, por vezes até com aperfeiçoamento. Responsabilidade fiscal, consolidação da competição eleitoral democrática e inovações em programas sociais, com ênfase na preocupação com as causas da desigualdade (como a inflação, diferenças educacionais e de renda), são legados positivos deixados basicamente por estes dois pólos do sistema político.

-------------------------------------------------------------------------------- PT e PSDB devem ter projeto claro para o país --------------------------------------------------------------------------------

O próprio reconhecimento dos avanços, contudo, é dificultado por petistas e tucanos. A necessidade de criar um diferencial político prejudica o aprendizado comum em relação às políticas. Exemplo negativo do governo Lula: o uso sistemático da avaliação na área educacional tinha sido uma marca da Era FHC e, exatamente por isso, fora inicialmente negligenciado ou rechaçado pelos comandantes do Ministério da Educação. Se tivessem logo cedo assumido a importância dos instrumentos, teriam demorado menos tempo para acertar e ter um retrato mais claro do setor - algo que só ocorreu mais ao final do mandato presidencial. Exemplo negativo do eixo PSDB-PFL: a repetição da postura petista de fazer oposição em questões que exigem um comportamento para além das disputas partidárias, como ocorreu recentemente na aprovação de aumento irrealista e irresponsável para os aposentados.

Reconhecer os avanços não é hipostasiar as políticas públicas. É possível aperfeiçoar medidas político-administrativas, aprendendo com os resultados e descobrindo novos fatores ou questões negligenciadas de início. Os programas de transferência de renda fazem parte deste campo de aprendizado e aperfeiçoamento contínuos. Ademais, se as condições históricas se modificam, as ações governamentais devem também ser alteradas. E neste terreno, o das mudanças frente às novas realidades, as duas candidaturas favoritas à disputa presidencial têm dito quase nada. Se Lula e Alckmin raramente reconhecem o que ambos têm em comum ou podem utilizar da experiência do outro, bem mais difícil tem sido dizer ao eleitorado o que precisa tomar outro rumo em relação ao passado recente. O resultado é a defesa de uma agenda bastante "conservadora" no que se refere aos temas e aos meios, com pouca criatividade e propondo pouquíssimas inovações, quando há espaço e necessidade de mudar algumas políticas sem afetar o legado positivo deixado pelos últimos governos.

Os acertos administrativos dos dois eixos do sistema político brasileiro não apagam seus erros e lacunas. Muitas áreas tiveram pouco avanço ou pioraram nos governos FHC e Lula. Políticas públicas urbano-metropolitanas, saneamento básico, infra-estrutura, a relação entre carga tributária e qualidade dos serviços públicos, além, obviamente, do baixo crescimento econômico em comparação com outros países e com a segunda metade do século 20, precisam estar na agenda de campanha. Todos sabemos que os doze anos dos tucanos e petistas trouxeram boas novas contra a inflação e a desigualdade, todavia, deles deve se cobrar algo mais, para que mereçam mais quatro anos de mandato.

O mais desapontador é que, com toda experiência administrativa e aprendizado adquiridos, os dois eixos que lutam pela hegemonia política não conseguem apresentar um projeto de futuro claro ao país. Posso estar enganado, mas minha impressão é de que petistas e tucanos estão debatendo mais as brigas do passado e do presente do que os caminhos que deverão ser adotados daqui para diante. Precisamos de um modelo de desenvolvimento nacional para a realidade do século 21, tal como o varguismo nos legou em sua época. Sem isso, seremos tragados pela atual competição internacional, que aumentou o número de atores em disputa pela produção de riquezas capitalistas. Neste novo e incerto mundo, não há espaço para amadores ou para brigas políticas inúteis.