Título: Jardim das veredas que se bifurcam
Autor: Santiso, Javier
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2006, Opinião, p. A11

A América Latina mais uma vez está numa encruzilhada. Como no conto de Borges, a região está mais uma vez num jardim de veredas que se bifurcam. As eleições presidenciais recentes, realizadas na Bolívia, Chile, Colômbia, Peru e México, apontam definitivamente na direção de duas estratégias, duas veredas singularmente opostas. A Bolívia e o Chile de certa maneira simbolizam as duas trajetórias opostas. Por um lado, um desenvolvimento introvertido, inclinado a repetir a história, na qual uma luta de classes se tinge de cores indígenas e, por outro, um desenvolvimento extrovertido, imerso na globalização, símbolo da cartilha neoliberal e da aposta na economia do mercado. Ambas as interpretações destas eleições são possíveis. Ambas, porém, carecem de matizes para sintetizar as transformações que a região está vivendo.

A vitória de Evo Morales converteu-se num fenômeno midiático, particularmente nos veículos das publicações européias e dos EUA. Assim como há alguns anos, quando Hugo Chávez subiu ao poder na Venezuela, os estereótipos latino-americanos foram mais uma vez reativados. Como nos velhos tempos da odisséia cubana, quando Chávez chegou ao poder, o "bom revolucionário" voltou a exibir o seu verbo elétrico no continente. Com Evo Morales, a revolução bolivariana caribenha agora parece estender-se até o altiplano andino, reativando de passagem outro dos grandes estereótipos do continente, o do "bom selvagem", na sua versão pós-moderna, com telefone móvel incorporado e acesso sem fio.

É possível que essa mudança de rumo desemboque num outro beco sem saída. Enquanto isso, outros países da região optaram por alternativas, como o Peru ou a Colômbia. Ambos acabaram de assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. A reeleição de Álvaro Uribe na Colômbia mostrou que nem tudo na região é um vagalhão esquerdista. Igualmente, a eleição de Alan Garcia não ratificará uma santa aliança das esquerdas latino-americanas; estas hoje parecem estar mais desunidas que unidas, como demonstram as tensões entre Chávez e seu vizinho peruano, ou, mais ao sul, entre o Uruguai de Tabaré Vázquez e a Argentina de Néstor Kirchner.

-------------------------------------------------------------------------------- As democracias da América Latina estão chegando a 25 anos de vida média e, apesar dos sobressaltos, nenhum país teve o "baile" interrompido --------------------------------------------------------------------------------

Existe, contudo, uma tendência mais sutil e igualmente importante em contraponto ao auge e novo florescimento nacional-populistas. Mais para o sul, no Chile, outro evento radicalmente diferente continua ocorrendo. Com Michelle Bachelet, pela primeira vez, uma mulher foi alçada à presidência do país, uma novidade no sul do continente. A modernidade chilena difere completamente da boliviana. Neste país, com um PIB nominal dez vezes superior ao da Bolívia, os "bons revolucionários" deixaram de estremecer a paisagem política há anos. Da mesma forma, o ditador de óculos escuros foi perdendo, julgamento após julgamento, o seu sorriso de Monalisa. O país desfruta novamente taxas de crescimento "asiáticas" (6% em 2005), impulsionadas por um modelo exportador e pelos preços do cobre no seu pico histórico. As taxas de investimento beiram os 25%, um recorde na região, e os prêmios de risco são os mais baixos do continente.

Acima de tudo, o país inclinou-se, há um quarto de século, na direção de um pragmatismo econômico, que foi se ancorando, reforma após reforma, na combinação de abertura exterior com controles de capitais, privatizações de empresas com regulamentações de pensões, aposta na economia de mercado e com a manutenção de boa parte da riqueza do cobre sob controle estatal. No Chile não ocorreu, como aconteceu repetidas vezes, a vitória do "bom liberal" sobre o "bom revolucionário". O êxito do modelo chileno é precisamente o de ter conseguido desarmar os modelos e se desfazer dos paradigmas, de ter conseguido impulsionar, de maneira pragmática e gradual, uma política econômica do possível. Esta senda também foi percorrida por outros países da região, começando pelo Brasil e México, mas também por Colômbia e Uruguai, como já destacamos num livro publicado recentemente - ver Javier Santiso, "Latin america´s political economy of the posible: beyond good revolutionaries and free marketeers", [A economia política do possível na América Latina: para além de bons revolucionários e adeptos do livre mercado] Cambridge, Mass., MIT Press, 2006.

Nos próximos meses a maratona eleitoral prosseguirá na América Latina. Um após outro, cada país deverá eleger a sua vereda em desenvolvimento. Depois do México, o Brasil votará em outubro; em seguida Equador, Nicarágua e, por último, Venezuela. Em menos de um ano, terão sido realizadas uma dezena de eleições presidenciais no total. A intensidade do ciclo político sem dúvida alimentará os noticiários. É possível que mais "bons revolucionários" surjam das urnas. O que mais chama a atenção, porém, é a própria densidade do baile: as democracias latino-americanas estão chegando a 25 anos de vida média. Apesar dos sobressaltos, em nenhum país o baile foi interrompido de forma abrupta. Em todos, os sonhos e os pesadelos brotaram, mas sempre vindos das urnas.

Javier Santiso é economista-chefe e diretor adjunto do Centro de Desenvolvimento da OCDE.