Título: A ambição juvenil e a lenta transformação
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2006, Eu & Investimentos, p. D6

Dentro do moderno mapa vinícola da Itália, pode-se dizer que a região do Veneto prima pelos contrastes: ao mesmo tempo em que sacia a sede de consumidores incautos com proseccos, valpolicellas e bardolinos, entre outros rótulos de padrão bem questionável, coloca na seleta galeria dos grandes vinhos italianos um tinto cultuado pelos mais exigentes apreciadores, o Amarone della Valpolicella, mais conhecido apenas por Amarone, para evitar associações indesejáveis.

O mais grave é que ambos, o nobre e o pobre, são produzidos nas mesmas zonas e basicamente com as mesmas castas. A diferença começa no processo de elaboração. No Amarone as uvas são selecionadas e deixadas para secar durante três a quatro meses em ambientes apropriados, até virarem passas, quando são enfim colocadas para fermentar. O processo mais oneroso e o tempo mínimo de 2 anos que a legislação os obriga a permanecer envelhecendo em cantina antes de serem comercializados, afasta aqueles comerciantes mais interessados em menos trabalho e lucro imediato, o que garante um mínimo de qualidade. Mesmo assim há amarones e amarones.

Se entre os bons um nome deve ser destacado é Romano dal Forno (importado para o Brasil pela Cellar). E para chegar nessa posição ele não poupou esforços e ousadia, além evidentemente de usar o talento e a intuição que poucos conseguem reunir. Para comprovar, nem é preciso chegar em seu Amarone, uma preciosidade difícil de se conseguir. É suficiente provar seu Valpolicella. Esse Valpolicella demonstra as virtudes de Dal Forno e o respeito que ele tem pela sua terra. Em sua cantina no vilarejo de Illasi, uma área à leste de Verona e fora da zona histórica dos Valpolicellas, onde nasceu e foi criado, Romano Dal Forno concedeu esta entrevista exclusiva para o Valor.

Valor: Quando o sr. começou, na década de 80, a mentalidade na região não era voltada para vinhos de qualidade. De onde nasceu essa sua idéia de excelência?

Romano Dal Forno: Na juventude a gente pode sonhar, e é bom que o homem sonhe também até uma idade avançada. Eu tinha também uma ambição. Eu pertencia à Valpolicella, um vinho de classe B, genérico, não classe A. Então eu queria de alguma forma demonstrar que um patinho feio pode tornar-se um belíssimo cisne. Enfim, pensei que a minha terra poderia ter vocação para fazer grandes vinhos.

Valor: Então foi um desafio?

Jorge Lucki/Valor O importante na cantina é evitar o mofo: ventiladores sopram as uvas Dal Forno: Queríamos que esta terra de Illasi pudesse estar à mesa com as grandes regiões vinícolas italianas, e agora gostaria de poder colocá-la na grande mesa junto dos vinhos mundiais. Estamos trabalhando nisso, a ambição é fundamental para o homem, desde que nunca se torne arrogância. Esta freia, mata o homem. Mas a ambição sadia leva a manifestar a boa vontade que um homem pode ter.

Valor: Antes de começar a atividade aqui, o senhor trabalhou em outra vinícola, ou algo da família?

Dal Forno: Não. Infelizmente tem uma história que circula no âmbito jornalístico e também aqui entre alguns habitantes de Verona, dizendo que eu trabalhei na cantina Quintarelli, e isto absolutamente não é verdade. É verdade que se hoje eu estou aqui e ocupo este lugar é porque antes fui atrás do homem Quintarelli. E com ele tive boas conversas, recebi boas sugestões para começar a caminhar. É como se ele tivesse feito o papel da mãe que ensina a criança a dar os primeiros passos.

Valor: Ele tem um estilo diferente do seu, não?

Dal Forno: É uma figura que, como era justo que fosse, cumpriu o seu curso. Ele continua produzindo vinhos de grande respeito, mas falar de renovação no limiar dos 80 anos? Acho que nem o papa Wojtyla que foi um osso duro não tinha mais tanta vontade. É mais do que compreensível.

Valor: Seria de se perguntar até onde tradição não é excessivo apego ao passado?

Dal Forno: O que me incomoda é a visão estreita de como se interpreta a tradição. O Quintarelli, pela idade, tem todo o direito de falar de tradição. Mas é tolo o jovem que tem menos de 30 anos, escutar da boca do Quintarelli "nós somos a tradição" e dizer "se o Quintarelli diz isso, eu também digo". Ele não entendeu que lhe faltam 60 anos para dizer estas coisas. Porque, para mim a verdadeira tradição, aquela com t maiúsculo, é um lento, inexorável processo de transformação. Não há nada que fique no mesmo lugar, do hoje ao amanhã. Mesmo nós quando nos olhamos no espelho nos achamos idênticos a ontem, mas depois de um ano a fotografia nos diz: ôpa!.. ou depois de dois anos, "porcaccia miseria", que diferença!! O mundo transforma tudo, lentamente, não há nada estável. Vai querer que o vinho fique ali estável com os sabores de 40 anos atrás, com as técnicas de 40 anos atrás? Não dá.

Valor: Como evoluir sem perder o rumo?

Dal Forno: É preciso muito cuidado, ser mais crítico que os críticos. Pensar apenas numa nova teoria sem ter um senso crítico na base, vai-se anos até perceber que se fez uma bobagem. É, portanto, desperdiçar tempo para nada, e dinheiro quase sempre.

Valor: Pelo visto o sr. aplicou bem essas teorias.

Dal Forno: Acho que tivemos a sorte, digamos, de ter que prestar muita atenção para não errar ao longo dos primeiros 20 anos de vida. Sabíamos que era fácil errar, porque a nossa experiência era pouca. Eu agora vou fazer 49 anos. Mas claramente eu era jovem, e o fato de ter que estar muito atento para não cometer erros, me induzia a produzir pouco, a escolher os cachos melhores, e entender antes de produzir.

Valor: Eram conceitos bem racionais para um jovem arrojado.

Dal Forno: Para mim sempre foi uma exigência: criar um produto que no ano próximo pudesse estar mais ou menos na mesma linha, ou talvez um degrau acima. Só deste modo eu adquiro, ou adquirirei, a confiança dos meus clientes. É como se hoje alguém que canta uma ópera maravilhosa e no dia seguinte está rouco. Quem compra o ingresso pergunta se está pagando para escutá-lo na melodia ou no infortúnio? É importante ter uma constância. Por isso optamos pela viticultura francesa. E a França explorou melhor que qualquer outra o conceito da qualidade na viticultura.

Valor: Como isso se deu na prática?

Dal Forno: Aos poucos. Por exemplo começamos a converter os vinhedos que havíamos herdado do meu pai. Embora eu também já tivesse colaborado naquela implantação. Decidimos plantar o primeiro vinhedo com 11 mil plantas por hectare, muito densos, à francesa como se costuma dizer. Estávamos muito temerosos quanto ao resultado, porque quando se fazem escolhas desse tipo, é preciso estar consciente de que não se pode mais utilizar nenhum outro trator. Portanto vida nova, plantações novas, instrumentos novos, conceito novo, ou seja mudou tudo.

Valor: E isso foi quando?

Dal Forno: Em 97. Se a resposta fosse negativa, nós teríamos perdido uma montanha de dinheiro, e também alguns anos. Na realidade, o equilíbrio da vinha nos satisfez imediatamente, nos deu uma grande resposta. Tanto é que no ano 2000 aumentamos para 13 mil plantas/hectare, portanto ainda mais densas.

Valor: Em que sentido o sr. percebeu as melhoras?

Dal Forno: A diferença é que na velha vinha era necessário ter um olho muito atento para escolher os melhores cachos, enquanto agora - através do equilíbrio da planta e das podas de verão que regulam um pouco a produção, coisa em torno de 400, 500 gramas por parreira - toda a uva é aproveitada.

Valor: Os vinhos já refletiram esse trabalho?

Dal Forno: O grande salto, em especial foi para o Valpolicella, em 2002. Fizemos algumas mudanças no processo, fruto de pequenas experiências em 2000 e 2001, que foram as primeiras vindimas dos novos vinhedos implantados em 97, 98. O nosso valpolicella, até o ano 2000, era produzido, uma primeira parte com uva vindimada e fermentada logo, ou seja em outubro, um valpolicella jovem, diríamos. Mais tarde, depois da obtenção do amarone, colocávamos na cuba onde estava o Valpolicella limpo e fermentado, vinho de prensa do amarone mais uns 10% do próprio amarone, e esse conjunto ia para as barricas. Em 2000, colhemos as primeiras uvas destes novos vinhedos e as colocamos nas caixas para "passerizar" até novembro - a legislação nos impõe que até o final de novembro esteja concluída a fermentação do valpolicella - e obtivemos um valpolicella de uva "passita". Este vinho depois foi juntado àquele vinho de sempre, feito com uva fresca. E assim nasceu o valpolicella 2000. Qual a diferença? A pureza dos aromas, o frescor da fruta, sustentada também por uma rigorosa atenção para absolutamente não oxidar mais o vinho na fase fermentação / prensagem / trasfega / entrada na barrica.

Valor: O seu Valpolicella era então um "mini-amarone", não um "ripasso".

Dal Forno: Não gosto do método de ripasso. Não dá um vinho "limpo". Veja, em 2000 fizemos também uma experiência, uma prova de degustação, do vinho obtido apenas com aquele levemente "appassimento". Saiu maravilhoso. Não havia notas desafinadas. E depois pusemos numa barrica como experiência. Quando se prova ele agora percebe-se um vinho de outra raça, soberbo, sublime.

Valor: As experiências prosseguiram?

Dal Forno: Em 2001 esta uva posta para descansar aumentou muito em porcentagem porque entraram em produção novos vinhedos. A qualidade aumentou porque havia menos vinho de uva fresca e mais vinho de uva "passita". O 2002 foi um ano crítico, chuvoso, difícil. Embarcamos logo nesta idéia, pusemos toda a uva levemente em appassimento, e saiu o primeiro valpolicella que pertence a esta filosofia. E claramente em 2003, 2004, 2005 continuamos com este sistema, visto o resultado que é muito positivo. A diferença é essa, o baixo rendimento, a seleção das uvas certas, um leve appassimento e só. Nada mais.

Valor: É um valpolicella diferenciado, de custo alto.

Dal Forno: O custo de produção é equivalente ao da obtenção de um amarone. Só que partindo de 100kgs de uva de valpolicella obtemos mais ou menos 32 litros de valpolicella. Enquanto que dos 100kgs que deixamos descansar para o amarone obtemos mais ou menos 15 a 17 litros, a metade. Portanto, o preço do valpolicella deveria ser a metade daquele do amarone.

Valor: O sr. utiliza basicamente as 3 castas tradicionais do Veneto?

Dal Forno: Temos a corvina e o corvinone, que são bem similares, da mesma família, e elas representam uns 60% do total. Depois tem cerca de 20% de rondinella, 10% de oseleta e 10% de croatina.

Valor: Não tem molinara?

Dal Forno: Não considero a molinara uma casta importante para vinhos destinados a ter vida longa ou a ser consideravelmente encorpados.

Valor: A seleção das uvas, o que vai para o valpolicella e o que vai para o amarone, como é feita?

Dal Forno: A seleção se faz no campo, por idade das parreiras. As de até 10 anos, nós obtemos somente valpolicella. Acima de 10 anos começamos a produzir o amarone.

Valor: E o processo de vinificação?

Dal Forno: Para mim a fermentação só pode ser em aço inox. Um tanque normal, vertical de 15 mil litros, com fundo e topo arredondados. Nos topos mandamos instalar uns pistões hidráulicos de longo curso e de boa pressão porque as massas do amarone são mais densas. Para o valpolicella a cuba é a mesma, em condições análogas.

Valor: E quanto às barricas? O sr. as usava desde o inicio?

Dal Forno: Não. Nós começamos, em 1983, trabalhando com botti (tonéis) que eu tinha comprado usadas do Quintarelli. Era o melhor que se podia fazer, embora não me entusiasmasse. Em 85, 86, comprei as primeiras botti novas, de 12 a 30 hectolitros, e achei que o vinho nascido dali era melhor. Ao mesmo tempo quis experimentar a barrica, ou seja uma botte pequena. Lembro que de um importador na Holanda, que me desaconselhou, dizendo que eu perderia identidade; a barrica é invasiva, poderia até mesmo ser confundido como um vinho de bordeaux. Não era algo execrável. Como dizer a um fabricante de carros artesanais: não pinte de vermelho porque poderiam parecer uma Ferrari. Então o jovem dentro de mim disse: vamos experimentar. Já em 87 tínhamos comprado umas barricas de 350 litros, os "tonneaux", sempre de carvalho eslovênia.

Valor: A partir de quando o estágio em barrica foi adotado integralmente?

Dal Forno: Em 89 foi um ano difícil. A partir de 1990, um ano muito bom, o Amarone passou a 100% barrica e 100% nova. O valpolicella transitou, até 1995, com uma parte de nova e uma parte de segunda pasagem. Desde 95, tendo feito um trabalho na vinha - a safra de 95 foi boa - passamos a 100% de barrica nova. E agora não há mais sombra de botti aqui dentro.

Valor: E a tendência atual de usar menos barrica?

Dal Forno: Não tenho nenhuma intenção e nem me passa pela cabeça a idéia de voltar às velhas botti. Já faz alguns anos que a barrica é considerada um pouco em declínio, malvista, como algo que faz degenerar as qualidades específicas do vinho, o que na minha opinião é uma bobagem. Tudo bem que as modas às vezes é preciso criá-las, mas na verdade eu acho que quando a barrica invade o vinho é porque o vinho não estava à altura da barrica, ou seja, o problema era nosso e não da barrica.

Valor: Que tipo de carvalho o sr. usa?

Dal Forno: Nós trabalhávamos somente com as barricas francesas, mas nos últimos 7 anos testamos as americanas, feitas porém na França, com carvalho americano. E gostei. No fim, na vindima 2003 usamos 90% madeira americana, em 2004 foi 100% e idem em 2005. Fabricadas na França, como dizia.

Valor: Os jovens que chegam agora, à região, à produção do valpolicella, adotaram esta nova mentalidade?

Dal Forno: Quem mora na valpolicella clássica, tendo de fato uma historia mais antiga do que a nossa, sobretudo muito mais extensa e enraizada, é provável que eles transmitam de pai a filho o modo de fazer e de pensar. E portanto talvez seja um pouco difícil para eles eliminarem essa sombra do passado. Enquanto que eu, não tendo essas raízes, olhei de frente o que achava interessante e o que não achava interessante.

Valor: É a história de que é preciso ser crítico o tempo todo.

Dal Forno: Certamente e estou feliz. É que, repito, não sendo enólogo, não pertencendo a uma família com história nesse setor, para mim, entrar nesta aventura, significou mergulhar nela completamente, dedicar toda a minha energia e capacidade para ir fundo no assunto vinho.

Valor: É dedicação total.

Dal Forno: Acho que é isso que chamam dedicar-se de corpo e alma a um trabalho. Felizmente a família também concorda, ou seja, não se opôs a este sistema. E devo dizer que eles também estão em parte envolvidos, minha mulher com certeza, ela é parte vital nesta atividade. Porque ela, por exemplo, depois de meses trabalhando aqui na cantina, na embalagem das garrafas, preparando as encomendas, fala: "Bom, não vejo a hora de ir na vinha, porque estou cansada de ficar aqui no escuro". É uma mulher nascida de família contadina (camponesa, de agricultores) onde o imperativo absoluto era o trabalho, e para ela é assim ainda hoje. Também foi importante a sorte de poder contar com pessoas que colaboram com a gente. Nestes anos trouxemos para cá o irmão dela, que entrou também com propriedades, 8 hectares de terra. Um primo, com 3 hectares; outro primo com mais 3 hectares. Assim, com toda a família, próxima e de segundo grau, chegamos a 26, 27 hectares, que ainda não são todos produtivos mas dentro de poucos anos serão. É fundamental contar com a família , e aqui felizmente isto é possível, o fator-família existe.

Valor: Além do trabalho na vinha o sr. também se preocupou com as instalações. A cantina é belíssima.

Dal Forno: Esta parte onde nós estamos é a primeira fase, de 1990. Estamos ainda ampliando e em fase de acabamento. A obra começou há 4 anos e meio e espero que este ano cheguemos perto do final, mas não sei se vamos conseguir. A parte mais importante que é o depósito com as caixas para appassimento das uvas está pronta e com todas as condições para elas alcancem perfeito estado. O importante aqui é que não pode ter mofo. Há uma corrente de ar de norte a sul, um vento que sopra frequentemente quando abrimos a janela, e alem disso os ventiladores, tudo automático, que passam continuamente perto das uvas soprando de ambos os lados.

Valor: Para terminar, o senhor tem três filhos homens. Todos já trabalham aqui?

Dal Forno: não, só o mais jovem, porque quis parar de estudar, depois de ter se formado como perito agrário. O segundo, este que estava aqui estuda administração. O mais velho está se formando, este ano ou no começo do ano que vem, em enologia e viticultura.

Valor: Que sorte. Um fará o vinho, outro a uva, outro cuidará das contas.

Dal Forno: Tomara, tomara, a gente nunca sabe. Além disso, são jovens. Vai depender também das mulheres que escolherem.