Título: Nacionalização do gás sofre reveses na Bolívia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2006, Opinião, p. A14

Desde que o presidente Evo Morales ordenou a invasão de refinarias da Petrobras por tropas militares no dia 1º de maio e nacionalizou a produção de petróleo e gás na Bolívia, a administração estatal da maior riqueza boliviana não prosperou. Morales apelou para uma medida de ruptura política com o passado que dele era esperada e para o qual foi eleito, mas descobriu logo cedo que recriar das cinzas a Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos não era uma tarefa simples nem imediata. No mês passado, o processo foi parcialmente suspenso por falta de verbas para a estatal que deverá gerir todo o sistema de combustíveis do país.

Além de recompor um corpo técnico e administrativo a partir do nada, Morales está envolto em várias batalhas políticas onde o gás, do qual a Bolívia tem a segunda maior reserva do continente, está presente como coadjuvante ou ator principal. Às voltas com disputa política para dominar a Constituinte que irá reescrever as leis do país, o atual governo do Movimento ao Socialismo (MAS) não tem hesitado em criar fatos que lhe tragam dividendos políticos, tarefa na qual é seguido pela oposição. O mais recente deles foi a descoberta de um suposto contrato lesivo à nação feito pela Iberoamerica Trading, contratada de maneira obscura pela YPFB para revender petróleo à brasileira Univen. Partidos oposicionistas aprovaram moção de censura ao ministro dos Hidrocarbonetos, Andrés Soliz Rada, que teve de ser apoiado pessoalmente por Morales para continuar no cargo.

Soliz Rada saiu chamuscado e perdeu parte de seu poder, embora não sua irritação e sua descontrolada verve quando o assunto diz respeito às empresas de petróleo estrangeiras que operam no país, especialmente a Petrobras. O ministro disse que os oposicionistas estavam em conluio com as petroleiras e que a Petrobras estaria "arrecadando fundos para fazer fracassar o processo de nacionalização".

No fim de semana, a polícia boliviana invadiu os escritórios da Andina, pertencente à espanhola Repsol, para buscar documentos sobre contratos da empresa com a Petrobras, agora também sob suspeição de fraude. Radicalizar posições contra as "multinacionais" é moeda corrente na política boliviana. Sua eficácia no caso do gás, porém, tem sido nula. Por trás da nuvem de retórica, esconde-se a suspeita de que a Bolívia nacionalizou os combustíveis sem estar preparada para isso e, pelo que vem acontecendo, sem saber como realizar a estatização e sem procurar previamente os meios para isso. As conseqüências são previsíveis e mais que conhecidas - os investimentos externos no setor desapareceram. Morales pode atrair ou os companheiros da PDVSA de Hugo Chávez ou novatos na região, como os chineses, que não são substitutos muito confiáveis.

Com sua alta octanagem dissipada em várias frentes, a energia política do governo Morales não produziu acordos dignos de nota com as multinacionais do setor e o prazo para que isso aconteça expira no primeiro dia de novembro. As negociações com a Petrobras estão paradas. A estatal brasileira se recusa a aceitar aumentos, porque eles já estão previstos no contrato de 20 anos em vigor. O mais grave é que não está assegurado que a Petrobras será ressarcida pelas refinarias que passarão ao controle majoritário da YPFB. Álvaro García Linera, vice-presidente, veio ao Brasil na semana passada para tentar destravar os canais de entendimento e buscou mais uma vez fazer com que as decisões sobre a questão fossem predominantemente políticas - do lado boliviano elas o foram desde o começo. O governo brasileiro, corretamente, não concorda e espera um pré-acordo econômico viável, que atenda ao interesse dos dois países.

Está nas mãos do governo boliviano as definições fundamentais dos contratos de exploração que entrarão em vigor a partir de novembro. Não está claro o que ele pretende fazer nem como as discussões com a Petrobras serão encaminhadas, especialmente em um momento de acirramento das contendas políticas em torno da Constituinte. Seja qual for a solução da controvérsia - e ela pode não ser desfavorável à Petrobras - o suprimento de gás boliviano tornou-se pouco confiável e, ao mesmo tempo, insubstituível a curto prazo. É por isso que o governo brasileiro não tem elevado o tom nas negociações, enquanto aperfeiçoa um plano B para o futuro que diminua a dependência.