Título: A falácia do Orçamento federal impositivo
Autor: Dias, Guilherme
Fonte: Valor Econômico, 29/08/2006, Opinião, p. A14

O recente escândalo da "Máfia das Sanguessugas" trouxe novamente ao debate a tese do Orçamento impositivo. Esta tese advoga que o Orçamento aprovado pelo Legislativo deveria ser obrigatoriamente implementado pelo Executivo, em lugar do caráter autorizativo que hoje prevalece. Há quem defenda que o Orçamento impositivo seria necessário para aperfeiçoar o processo democrático, proporcionando maior independência ao Legislativo, ao garantir a execução da totalidade das emendas parlamentares. Não se sabe exatamente o porquê, mas os defensores da tese argumentam ainda que o Orçamento impositivo também seria inibidor de eventuais práticas de corrupção ou desvio de recursos públicos.

A tese do Orçamento impositivo é uma daquelas idéias que me faz lembrar uma frase fixada no gabinete do então ministro da Fazenda, Pedro Malan, que dizia algo assim: "Para todo problema complexo há uma resposta simples. Normalmente equivocada". Além de inaplicável, pois eliminaria o pouco de flexibilidade que restou na gestão das finanças públicas, suspeito que o Orçamento impositivo em nada contribuiria para melhorar a qualidade e a eficácia do gasto público.

Na prática, o Orçamento da União já é impositivo! As despesas chamadas "discricionárias" respondem apenas por 15% da despesa não-financeira. Entretanto, como ainda estão incluídos o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o custeio da administração pública (universidades, Forças Armadas etc.) e outras despesas permanentes, é razoável supor que o governo exerça discricionariedade sobre no máximo 3% dos gastos, algo em torno de R$ 15 bilhões. Este fato não é novidade, pois o Orçamento é um diploma legal que tem que dar curso a direitos e benefícios fixados na Constituição ou na legislação infraconstitucional. Em bom português, o Orçamento federal não mais contrata despesas, ele apenas processa despesas já contratadas. Este já conhecido problema está na raiz de termos a combinação esdrúxula de elevada carga tributária, ausência de investimentos públicos e déficit fiscal (superávit só quando excluídas as despesas financeiras, o superávit primário).

Para recuperar o Orçamento federal como um instrumento de promoção de investimentos sociais e em infra-estrutura, o caminho é reduzir o grau de rigidez da despesa pública e não o contrário. Na ausência de uma reforma fiscal abrangente, a defesa do Orçamento impositivo limita-se a uma tentativa de obrigar o Executivo a executar as emendas parlamentares. A princípio, nada contra a existência de emendas parlamentares. Entretanto, como a opção de redefinir as prioridades indicadas pelo Executivo é mais custosa politicamente, o caminho usualmente trilhado pelo Congresso Nacional é tão somente adicionar despesas a partir de reestimativa de receitas ou indicação de fontes de financiamento incertas, o que agrava o problema fiscal.

-------------------------------------------------------------------------------- O Estado deve reduzir o seu papel como executor direto para reforçar sua capacidade de regulador e contratador de serviços --------------------------------------------------------------------------------

O aperfeiçoamento da gestão orçamentária da União passa não apenas por efetivar uma nova geração de reformas para reduzir o déficit da Previdência, pública e do regime geral, mas também por mudar a forma de prover os serviços públicos. O modelo tradicional de prover serviços à população pressupõe a "estatização" dos meios: contratação de pessoal, construção de imóveis, administração de insumos e materiais, tudo sob a lógica e as restrições da legislação que rege a administração pública. Deve-se buscar a contratação de serviços junto a organizações não-governamentais, com fins lucrativos ou não. Naquilo que não é função exclusiva do Estado, o poder público pode e deve reduzir o seu papel como executor direto para reforçar sua capacidade de regulador e contratador de serviços.

Outro caminho para melhorar a gestão é reduzir os repasses "carimbados" a projetos no Orçamento da União. Isto implica em descentralizar a execução e adotar critérios pré-definidos - transparentes e horizontais - para transferência de recursos. Exemplo: ao invés de alocar recursos federais para a aquisição de ambulâncias, remunerar melhor os serviços prestados pelos municípios através do programas como o Saúde da Família ou o Piso de Atenção Básica, para citar apenas dois.

Há boas experiências de descentralização e redução do grau de "politização" na execução de programas federais. O caso da educação durante o governo FHC é emblemático. Programas como "Dinheiro Direto na Escola" e de merenda escolar estabeleceram repasses financeiros para cada escola gerir suas necessidades, reduzindo custos, aumentando a capacidade de fiscalização pela comunidade e observando as diferenças regionais. Outros programas sociais seguiram a mesma linha: descentralização, transparência nos critérios de alocação de recursos, simplificação de procedimentos e foco nos resultados. Curiosamente, o Ministério da Educação deixou de ser prioritário na alocação de emendas parlamentares, particularmente as chamadas emendas individuais.

Portanto, a chave para melhorar a gestão do Orçamento é adotar critérios sócio-econômicos (índice de desenvolvimento humano, população etc.) e/ou indicadores de desempenho para a alocação dos recursos públicos, reduzindo o peso das indicações derivadas meramente do jogo de forças políticas. A tese do Orçamento impositivo nem de longe busca soluções para estes problemas.