Título: Os maiores consumidores do mundo e o agente de Bush
Autor: Lucki, Jorge
Fonte: Valor Econômico, 01/08/2006, Eu &, p. D6

Nenhum evento associado a vinho teve tamanha repercussão e gerou tantos desdobramentos quanto o "Julgamento de Paris", degustação confrontando rótulos californianos e franceses realizada na capital francesa em 1976. Na ocasião, em prova às cegas, os tintos e brancos americanos deixaram para trás congêneres franceses de prestígio, fato absolutamente inesperado e de difícil contestação já que o júri era composto de competentes degustadores locais.

O primeiro e mais previsível efeito desse resultado foi, sem dúvida, a projeção que a Califórnia ganhou de uma hora para outra no cenário vinícola internacional. Isso poderia fazer supor que a vitivinicultura naquele charmoso estado americano era um fenômeno recente. Na verdade a cultura da vinha na área, iniciou-se, de forma inteligente, junto com sua anexação aos Estados Unidos, deixando o domínio mexicano por volta de 1850.

Acidentes de percurso atrasaram seu desenvolvimento. Alguns naturais, como a crise da Phyloxera que destruiu seus vinhedos no fim do século XIX, e outros provocados pelo homem, caso da "lei seca" que impediu a venda e consumo de bebidas alcoólicas em território americano. Durante sua vigência, de 1919 a 1933, os vinhedos foram arrancados ou simplesmente abandonados. Logo em seguida veio a recessão e a Segunda Guerra.

O caminho foi retomado na década de 50 pelos que já estavam no setor, e que tendo sobrevivido a tantos imprevistos acreditavam ainda mais no futuro da terra e de seus vinhos. As atenções se concentraram na região do Napa, e em menor escala em Sonoma, que já haviam provado seu potencial nos primórdios. À medida que os resultados iam aparecendo muitos outros interessados foram se juntando num processo incessante, fazendo com que os Estados Unidos finalmente desbancassem a Argentina no início dos anos 90 e assumissem o posto de quarto maior produtor do planeta.

Boa parte desse volume fica mesmo no país, cujo consumo per capita tem crescido de forma consistente desde a década de 80. Estudos sobre a conjuntura mundial da bebida desenvolvidos por um instituto inglês e divulgados na última Vinexpo (feira internacional que se realiza em Bordeaux a cada dois anos) apontam, inclusive, que em 2008 os Estados Unidos serão os maiores consumidores mundiais de vinhos tranqüilos - isto é, espumantes à parte - em volume, na frente de Itália e França.

O aumento do interesse do consumidor americano por vinhos e o conseqüente fortalecimento do mercado interno do produto no país abriram espaço para que surgissem publicações especializadas, entre elas a Wine Spectator e a Wine Advocate, essa última editada por Robert Parker Jr., que se tornaria o mais influente e poderoso crítico sobre o assunto, dentro e fora dos Estados Unidos.

Parker, segundo ele mesmo escreve na edição de 25 anos de seu Wine Advocate, publicada em dezembro de 2003, pretendeu desde o primeiro número mudar a forma vigente de abordar o vinho, abandonando o lado histórico e cultural da bebida para se ater à qualidade do que era consumido no dia a dia. Enfim, como um Ralph Nader do vinho, "Informar o consumidor para que ele não fosse enganado". Descontente também com os sistemas de avaliação da época, especialmente o método de notas até 20 pontos, ele analisou algumas alternativas decidindo-se pelo modelo centesimal, igual ao utilizado pelos professores da Faculdade de Direito que havia cursado.

Não é demais afirmar que o fenômeno Robert Parker aconteceu por ele estar no lugar certo na hora certa. Quando Parker surgiu, em 1978, a economia mundial estava saindo de anos de recessão e o mercado de vinhos prestes a explodir. De um lado, o da produção, havia um grande número de novas e boas vinícolas aparecendo, e de outro uma leva de novos consumidores perdidos diante da oferta crescente, ávidos por saber o que comprar.

O sistema de avaliação de Parker, baseado numa fria pontuação que permite uma leitura rápida e direta, caiu feito uma luva nessa sociedade moderna, consumista e apressada. Há, no entanto, vantagens e desvantagens nesse poder constituído: se é verdade que Robert Parker é idôneo e bom degustador, poucos se dão conta de que ele tem preferências e deficiências, e seu gosto não pode ser estendido indiscriminadamente como se fosse absoluto e definitivo.

Parker tem, definitivamente, predileção por vinhos intensos e robustos, e dá menos importância àqueles com certas sutilezas e voltados à elegância - também não poderia ser diferente para quem está habituado a provar mais de 60 amostras em série. Sabendo disso e, mais ainda, da influência que uma nota boa dele tem para o sucesso nas vendas, muitos produtores mudaram o estilo de seus vinhos para se adequar ao gosto do guru. A "parkerização", como se convencionou apelidar o processo, alastrou-se por todos os cantos, desde produtores de regiões prestigiadas, caso de Bordeaux e Toscana, ou vinhos ainda pouco conhecidos que buscam destaque no mercado externo.

Essa influência "parkeriana" nunca agradou aos profissionais com tendência mais tradicional, ou seja, a maior parte dos europeus. A despeito de criticarem o estilo Parker, porém, pairava uma certa diplomacia. Isso parece ter desandado nos últimos tempos, e ficou particularmente mais evidente com as divergências entre o americano e a até então sempre cordata autora inglesa Jancis Robinson, apoiada ainda por outro britânico de peso, Michael Broadbent.

A discussão teve como pivô o Château Pavie, um St Emilion Grand Premier Grand Cru Classé "B", que depois de passar anos à deriva foi comprado em 1997 pelo arrojado empresário Gérard Perse. O novo proprietário investiu rápido e pesado na recuperação do Château, contratando ainda o renomado consultor Michel Rolland como assessor. O vinho mudou de cara e conseguiu, logo no ano seguinte, alcançar altas notas de Robert Parker. Há muitas histórias sobre a relação Perse e Parker, e nelas atuam como coadjuvantes o próprio Rolland e ainda Alain Raynaud, dono do Château Quinault l´Enclos, outra figura de destaque na região. Robert Parker é, aliás, padrinho de um dos filhos de Raynaud.

O novo estilo, moderno e encorpado, do Château Pavie caiu nas graças do autor americano - melhor não pensar em eventuais favorecimentos -, e, em contrapartida, forte censura dos críticos ingleses por trair o estilo tradicional dos St Emilions, sendo mesmo, no caso do 2003, comparado a um vinho do Porto. Dizendo que tal característica vai bem no Douro e não em St Emilion, Jancis deu-lhe uma nota 12 sobre 20, bem baixa, portanto. Parker, que lhe tinha conferido 96-100, saiu da toca, tomou as dores e contra-atacou fazendo uma série de acusações à inglesa.

De lá para cá outros se juntaram a Jancis Robinson, e um dos mais recentes foi o renomado Hugh Johnson, que acusou Parker de ser "ditador do gosto" e "quase" agente de Bush. O que a polêmica demonstra, em todo caso, é que há diferenças na abordagem do vinho, tanto no produzir, quanto no analisar. É esse o principal ponto a se comentar da organização e dos resultados da reedição do Julgamento de Paris, realizado em maio passado em comemoração aos 30 anos do evento que deu margem a tantos desdobramentos. Assunto do próximo artigo.

colaborador-jorge.lucki@valor.com.br