Título: Esclarecendo o debate fiscal
Autor: Almeida,Mansueto
Fonte: Valor Econômico, 06/02/2012, Opinião, p. A10

Em 2011, o setor público cumpriu com folga a meta do superávit primário de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB). A outra boa notícia é que com essa economia a Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) passou de 39,1% do PIB para 36,5% do PIB, uma redução de 2,7 pontos do PIB.

Apesar de o Brasil ter utilizado a política fiscal de forma excessiva para combater os efeitos da crise em 2008/2009, o país recuperou a meta do primário (3,1% do PIB) e manteve a trajetória de redução da DLSP. Na verdade, mesmo que o superávit primário tivesse sido menor (2,5% do PIB), ainda assim a trajetória da DLSP seria de queda. Assim, não há no horizonte imediato do Brasil o risco de uma crise fiscal. O debate fiscal é outro.

Atualmente, o que preocupa não é a sustentabilidade da dívida pública, mas o impacto dos gastos do governo na demanda agregada, a composição do gasto público (gastos sociais versus investimento) e se há espaço fiscal para reduzir a carga tributária. Vamos analisar cada um desses três pontos.

Primeiro, ser pegarmos a inflação média no Brasil desde 2008, retirando o ano de 2009 no qual o crescimento do PIB foi negativo, a inflação média foi de 6% ao ano. No contexto atual de baixa taxa de desemprego (inferior a 6%), qualquer crescimento muito acima de 4% afasta inflação da meta e força o Banco Central a elevar a taxa de juros. A preocupação com a manutenção do superávit primário em 3,1% do PIB reflete, principalmente, a preocupação em conciliar a queda da taxa de juros com a queda da inflação, ao invés de uma preocupação quanto à sustentabilidade da redução da DLSP em porcentagem do PIB.

Segundo, é cada vez mais claro que, apesar do orçamento do Brasil ser autorizativo e não impositivo, a margem do governo para realocar o gasto entre custeio e investimento é mínima. Desde 1999, o Brasil conseguiu conciliar maior responsabilidade fiscal com aumento da despesa primária graças ao aumento da carga tributária, que neste período cresceu mais de 4 pontos do PIB. O crescimento do gasto público, por sua vez, trouxe benefícios para a população.

Do lado do gasto é importante separar gastos sociais (LOAS, seguro-desemprego, abono salarial e Bolsa Família), custeio da saúde e da educação das demais despesas de custeio, que aqui chamo de custeio administrativo. Nota-se, pela tabela, que 87% do aumento do gasto público federal primário (não inclui juros e transferências), desde 1999, decorreu do crescimento das despesas do INSS e do aumento dos gastos sociais (2,6 pontos de um total de 3 pontos do PIB de crescimento). Esse aumento é explicado tanto pelo crescimento da cobertura dos programas sociais quanto pelo aumento real do salário mínimo de quase 80% neste período. Ao contrário da percepção comum, a conta de custeio administrativo decresceu no período em porcentagem do PIB.

É claro que muitos itens da despesa em porcentagem do PIB poderiam ter diminuído já que o crescimento real do PIB desde 2004 (acima de 4% ao ano) foi superior à média (2,6% ao ano) da década 90, o que facilitaria uma maior economia. Mas a dinâmica exata dessas contas reflete escolhas do eleitor, apesar de nem sempre o eleitor mediano conhecer as distorções que existem na seguridade social (pagamento de pensões mais de três vezes a média internacional) e o excesso de gasto de alguns poderes.

O investimento público poderia ter sido maior, mas parece que a escolha da sociedade neste período foi por mais gastos sociais e menos investimento público que, na prática, é a conta residual para garantir o resultado primário desejado quando a arrecadação não ajuda.

Terceiro, temos que reconhecer um fato incômodo. O modelo de crescimento em vigor no Brasil baseia-se em forte expansão dos gastos sociais e previdência que limita qualquer redução substancial da carga tributária. Não se sabe hoje se, nos próximos quatro anos, economias com despesas com pessoal e gastos sociais serão suficientes para aumentar o investimento público e ainda possibilitar alguma redução (pequena) da carga tributária. De qualquer forma, o debate fiscal será pautado cada vez mais pela realocação da despesa e eficiência do gasto ao invés de corte de despesas como é o caso de muitos países na Europa.

A nossa situação fiscal, apesar da elevada carga tributária e da qualidade dos serviços públicos muito aquém do desejável, chega a ser confortável em relação ao resto do mundo. É claro que esse equilíbrio tem custos e a indústria sente o peso desse modelo, mas se quisermos mudá-lo, seria bom combinar com o eleitor. Enquanto isso não ocorrer, os ajustes no gasto público serão marginais e o "espaço fiscal" para o investimento dependerá cada vez mais da arrecadação e da pouca margem de manobra que o governo tem para conciliar maior crescimento com o desejo imediato da sociedade por mais transferência de renda.

Mansueto Almeida é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A opinião expressa é a do autor, não representando o ponto de vista do instituto.