Título: Um imbróglio de fronteiras e papeleiras no Mercosul
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2006, Opinião, p. A5

Em reunião extraordinária, o Conselho de Ministros do Mercosul discutirá, hoje, a questão das "papeleras", como ficou conhecido o conflito entre Uruguai e Argentina por causa da anunciada construção de duas fábricas de celulose em território uruguaio, à margem do rio que divide os dois países. O Brasil tenta limitar o assunto a um problema bilateral, alheio ao Mercosul. Não é. Mas faz bem o governo em ter cautela antes de se meter na disputa.

A reunião do Conselho do Mercosul tem, como pretexto, a incorporação da Venezuela como membro pleno do bloco. O Uruguai já havia reivindicado a reunião extraordinária para tratar da questão das "papeleras" e avisou que aproveitará para cobrar um posicionamento dos sócios, e defender suas posições. As fábricas somam investimentos de quase US$ 2 bilhões, os maiores da história em um país cujo Produto Interno Bruto é de US$ 14 bilhões. Os uruguaios calculam que a construção vai criar mais de 18 mil empregos diretos e indiretos, em uma cidade estagnada desde o fechamento do frigorífico Anglo, em 1979.

Toda a discussão se sustenta na decisão da finlandesa Botnía e da espanhola ENCE, de aproveitar o potencial madeireiro próximo à cidade de Fray Bentos para construção de duas fábricas modernas de celulose na margem do rio Uruguai, o que gerou protestos e bloqueios na fronteira, organizados por ecologistas do lado argentino.

Fábricas de celulose são conhecidas por empestear o ar, e despejam nos rios resíduos potencialmente perigosos. O Uruguai argumenta que usará modernas técnicas de controle de poluição, mas os ecologistas exigem tecnologias mais sofisticadas, que evitem, por exemplo o uso de cloro no branqueamento da celulose. Assumida pelo governador da província argentina de Entre Ríos, Jorge Busti, peronista como o presidente Néstor Kirchner, a causa ecológica tornou-se questão de Estado.

O conflito tem origens também nas idiossincrasias dos governantes. As obras da "papeleras" começaram no governo Jorge Battle, na época, às turras com o argentino Kirchner, o que emperrou os canais diplomáticos bilaterais. Os argentinos acusam o Uruguai de descumprir um acordo de uso do rio na fronteira, que obriga o país a fazer consultas antes de aprovar medidas que afetem as águas comuns. Negociações foram encorajadas discretamente pelo governo brasileiro, mas seu fracasso levou o tema à Justiça internacional.

A Argentina aciona o Uruguai na corte de Haia, pelo cumprimento do estatuto de uso do rio Uruguai, e pede a interrupção das obras. Os acordos firmados pelo Uruguai falam em consulta prévia, com prazos de resposta, num imbróglio jurídico que pode muito bem levar a corte a condenar os uruguaios.

O caso pode estabelecer precedentes jurídicos na região. A Argentina já defendeu antes a tese de "consulta prévia com direito suspensivo" quando tentou impedir o Brasil de construir a hidrelétrica de Itaipu. A crise diplomática levantada na ocasião resolveu-se quando os argentinos, pragmaticamente, aceitaram um acordo de linhas técnicas, que fixou cotas para a binacional tendo em conta as necessidades da futura hidrelétrica de Corpus, que a Argentina planejava com o Paraguai, no mesmo rio. Agora, a Corte de Haia pode decidir por questões de princípio, dificultando ainda mais soluções pragmáticas.

O Uruguai apelou ao Protocolo de Olivos do Mercosul, e pede uma ação contra os bloqueios de estrada promovidos pelos ecologistas. Alega que eles causaram prejuízos de US$ 500 milhões pela paralisia do comércio e do turismo na região. É por esse caminho que estaria uma indicada ação brasileira. É inaceitável o bloqueio no trânsito de fronteiras como forma de pressão de um sócio contra o outro no Mercosul. Até o governador de Entre Ríos parece ter percebido isso, com declarações favoráveis a "outras formas" de protesto, nos últimos dias.

O exercício da liderança se faz de fato com iniciativas e criatividade. Cabe ao governo brasileiro incentivar a negociação entre os vizinhos, com atenção para as suscetibilidades nacionais. Mas o Brasil aviltará seu papel como sócio maior do Mercosul se não aproveitar o momento para deixar claro que não aceita formas de pressão espúrias como o impedimento do direito de ir e vir e agir para que ganhe vida ativa um organismo de resolução de controvérsias no bloco, cujas decisões sejam respeitadas e aceitas por todos.