Título: A política externa americana
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2006, Opinião, p. A7

O momento unipolar terminou. Os EUA continuam sendo a única verdadeira potência mundial. Mas a arrogante noção de que detinham a capacidade e o direito de reorganizar o mundo à sua vontade fracassou no Iraque. Muitos europeus ansiaram por ver os americanos punidos. Mas poucos queriam ver americanos recolher-se em isolacionismo.

Dei-me conta de quanto o clima mudou nos encontros deste ano do grupo Bilderberg em Ottawa. Três anos atrás, o ânimo dos participantes americanos ecoava as palavras do anônimo assessor de George W. Bush citado por Ron Suskind na New York Times Magazine de 17 de outubro de 2004: "Agora somos um império e quando agimos criamos nossa própria realidade". Agora, eles viram que a realidade morde.

Felizmente, a Europa não demonstrou prazer diante do sofrimento americano. Os europeus estavam bastante conscientes de que a alternativa a um engajamento americano na reforma do mundo poderia ser uma postura de isolamento. Mas é impossível lidar com quaisquer dos problemas mundiais sem a participação americana. Eles têm bastante consciência de que falta à Europa a vontade e os meios para agir por conta própria.

Por que o momento unipolar terminou? A resposta é que os EUA se excederam, e assim aprenderam, mais uma vez, a diferença entre poder e onipotência, como aconteceu nas selvas do Vietnã, quatro décadas atrás.

Em seu controvertido novo livro sobre os neoconservadores, o professor Francis Fukuyama, da Escola Internacional de Estudos Avançados da Universidade Johns Hopkins, argumenta que a linha de pensamento característica do governo Bush resultou em três erros (America at the Crossroads, Yale University Press, 2006).

O primeiro foi enunciar a incoerente noção de "guerra ao terror", que confundiu a ameaça de grupos terroristas específicos com uma lista de países "fora-da-lei" e o problema mais amplo da proliferação nuclear. O segundo foi não ter "previsto a virulenta reação negativa mundial a seu exercício de 'hegemonia benevolente'". A detenção indefinida de prisioneiros na Baía de Guantânamo e as torturas em Abu Ghraib arrasaram as alegações de virtude excepcional. O terceiro foi o fracasso de planejamento para o Iraque no pós-guerra e esquecer a dificuldade da engenharia social em tal larga escala.

Eu acrescentaria mais dois erros: exagero na crença da eficácia de poder militar e a decisão de tornar a implantação de democracia o objetivo central de política externa. Sobre o primeiro, as dificuldades do exército americano em impor ordem no Iraque mostra que o poder de destruir não é igual à capacidade de construir. O poder militar americano também não lhe dá condições de dobrar a China ou a Rússia à sua vontade. Quanto ao segundo, a proclamação do objetivo de implantar a democracia, ao mesmo tempo aceitando o apoio de déspotas amistosos, apenas vinculou aos EUA a imagem de hipócritas.

Entretanto os erros não são apenas conceituais. Esse deve ser o governo americano mais incompetente desde a década de 1920: o vice-presidente atuou como co-presidente, em parte para cobrir as inadequações do presidente com conseqüências prejudiciais; as armas de destruição em massa que justificaram a guerra no Iraque revelaram-se inexistentes; e, não menos importante, tanto autoridades civis como militares não foram responsabilizadas por prevaricar, a começar por Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa.

-------------------------------------------------------------------------------- O mundo não aceitará os EUA como patrão, mas ainda assim depende da liderança americana e dos europeus, que apesar de tudo continuam seus parceiros --------------------------------------------------------------------------------

Os EUA certamente irão se recuperar. Mas são enormes os danos ao capital moral dos americanos quando tentam persuadir líderes estrangeiros eleitos democraticamente a fazer o que desejam os EUA. A boa vontade sentida em grande parte do mundo após 11 de setembro de 2001 agora se esvaiu.

O que acontecerá agora? Mudança do regime de força está fora da agenda. Embora os EUA possam montar um ataque aéreo contra instalações nucleares iranianas, uma invasão está fora de questão. Está ganhando corpo uma restauração da autoridade dos tradicionais "realistas" em política externa, aponta Fukuyama. A reação contrária pode não terminar aqui. "Conservadores jacksonianos, os americanos de Estados republicanos cujos filhos e filhas são os que estão lutando e morrendo no Oriente Médio, alinharam-se com os neoconservadores em apoio à guerra no Iraque. Mas uma percepção de fracasso da política poderá empurrá-los de volta a uma política externa mais isolacionista". Os europeus deveriam tomar cuidado com o que irão desejar, pois poderão ser atendidos. Uma atitude americana isolacionista é tão não-atraente quanto uma postura excessivamente assertiva. Os EUA precisam desenvolver uma nova política externa. Os europeus precisam tentar ajudar.

Que feição deveria assumir uma política externa num mundo pós-pós-11-de-setembro? Para os EUA, ela deveria basear-se no que tem sido o coração de suas políticas desde 1941 - a promoção de uma ordem mundial liberal, com igual ênfase nessas três palavras: ordem, porque busca estabelecer relações pacíficas e, onde possível, institucionalizadas, entre países; mundial, porque oferece oportunidades a todos dispostos a jogar segundo as regras; liberal no sentido clássico, ou seja, um mundo de mercados abertos.

Isso não significa abandonar o objetivo democrático: à medida que as economias de mercado consolidam-se, a democracia tende a firmar-se, como aconteceu em Taiwan e na Coréia do Sul; e a democracia continua sendo um ideal atraente, como demonstraram as "revoluções coloridas" na ex-União Soviética.

Mas implica, sim, em aceitar que democracia é um dos diversos objetivos desejáveis, reconhecendo os obstáculos à sua imposição do exterior, admitindo que eleições sozinhas não criam liberdade e, acima de tudo, compreendendo o que torna única a evolução de cada sociedade.

Penso nessa abordagem como "realismo liberal". "Wilsonianismo realista" é como Fukuyama denomina sua versão complementar. Esta, declara ele, "reconhece a importância, para a ordem mundial, do que se passa no interior dos países. Tal política assumiria seriamente a parte idealista da velha agenda neoconservadora, mas assumiria uma nova postura em relação a desenvolvimento, instituições internacionais e uma série de questões que conservadores (neo e paleo) raramente levam a sério". A ênfase em instituições é fundamental. Muitos americanos atacam as instituições mundiais que os próprios EUA criaram. No entanto, freios e contrapesos institucionais são o cerne do sistema constitucional americano.

Por que seriam inaceitáveis em nível mundial? Essas instituições são imperfeitas. Mas qual é a alternativa? Uma anarquia mundial é intolerável. Um império americano é inaceitável. É preciso que as instituições mundiais funcionem.

Somente os próprios EUA podem decidir seu papel futuro. Mas os europeus podem ajudar, tornando-se, a um só tempo, mais eficazes como aliados e mais unidos como críticos. O mundo não aceitará os EUA como patrão. Mas isso continua dependendo da liderança americana, assim como os europeus permanecem seus parceiros naturais. Os dois campos precisam agora mudar, para que seu futuro seja melhor do que seu passado recente.