Título: Crise global vai afetar PIB do Brasil em 2007
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 16/06/2006, Especial, p. A8

O ex-presidente do Banco Central (BC) Ibrahim Eris prevê tempos um pouco mais complicados para o Brasil nos próximos 18 meses - e não apenas por conta das incertezas no cenário externo. Para ele, a economia pode de fato crescer 4% em 2006, mas tudo aponta para alguma desaceleração da atividade econômica no ano que vem. A política fiscal, marcada atualmente por forte aumento de gastos públicos, deverá ser mais apertada, lembra ele, acrescentando que o setor externo deverá contribuir negativamente para a expansão do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007, com um aumento das importações mais forte do que o das exportações, o que já está em curso. Com uma balança comercial um pouco menos robusta e uma elevada volatilidade externa, o câmbio deve ter alguma desvalorização, combinação que tem tudo para se traduzir em uma redução mais lenta dos juros daqui para a frente, principalmente dado o perfil conservador do BC, ressalta Eris.

Em entrevista ao Valor, Eris falou sobre as diferenças entre o Brasil e a Turquia, onde nasceu, e como ficam as perspectivas para os dois países com a piora do cenário externo. Segundo ele, a Turquia terá que sofrer ajustes bem mais fortes que o Brasil, já que tem um déficit em conta corrente superior a 7% do Produto Interno Bruto (PIB). A grande fraqueza da economia turca está justamente no setor externo, diz Eris, situação bem diferente do Brasil, que tem um superávit em conta corrente de 1,5% do PIB. Para ele, o Brasil é um dos países que sofrerão menos perdas com a atual turbulência, enquanto a Turquia é um dos que serão mais afetados, com uma desaceleração da atividade econômica mais forte - mas sem recessão - e um pouco mais de inflação.

Quer dizer então que a política econômica do Brasil dos últimos anos está certa e a da Turquia, errada? "Acho que os dois países erraram", afirma ele. "Enquanto a política monetária aqui foi excessivamente conservadora, lá foi excessivamente otimista." Ele ressalva, contudo, que é mais fácil fazer essa afirmação a posteriori. Mas a situação da Turquia não é de falência, completa. "A atual crise internacional tem origem nos problemas dos países centrais, e não nos dos emergentes."

Para Eris, o mundo está crescendo acima de suas possibilidade há três anos, e isso terá que ser resolvido por uma redução do ritmo de expansão da atividade econômica. A fórmula ideal passaria por uma política fiscal americana mais apertada e uma valorização da moeda chinesa. Se isso não ocorrer, pode ser necessária uma elevação mais forte dos juros globais, o que tende a causar mais turbulência.

Eris também ressalta que o desafio do próximo governo é retomar a capacidade de investimento do setor público. Sem isso, ficará difícil o país crescer a um ritmo forte e sustentado. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: O que há de semelhante e diferente entre Brasil e Turquia?

Ibrahim Eris: Nós passamos por um bom período em que os mercados enxergavam muito mais semelhanças do que diferenças, mas na verdade os dois países tinham algumas diferenças que aumentaram ao longo do tempo. A primeira e a maior é o setor externo. Enquanto ao longo dos últimos três anos o Brasil tem tido superávits comerciais elevados, que levaram a conta corrente a ter um saldo positivo na casa de 1,5% do PIB, a Turquia caminhou na direção oposta. No acumulado em 12 meses, o país tem déficit em conta corrente de US$ 27 bilhões. O último número que saiu foi muito negativo, de 7,2% do PIB. Mas, apesar desse déficit crescente, a lira turca veio se valorizando até o começo da crise nos últimos 30 dias. Depois, se desvalorizou. Mesmo com essas diferenças, a Turquia e o Brasil foram por muito tempo os queridinhos para quem buscava risco. O Brasil tem liquidez, um mercado com volumes grandes, ofertas públicas de ações atraentes, e a Turquia tem a perspectiva de entrar na comunidade européia. Além disso, também é um país com um mercado de tamanho razoável.

Valor: Por que há tanta diferença de saldo nas contas externas?

Eris: Basicamente porque a Turquia tem um crescimento muito maior que o Brasil (No ano passado, a Turquia cresceu 7,5% e o Brasil, 2,3%), mas é necessário entender também que a Turquia veio de um período recessivo muito feio. A segunda diferença importante é que a inflação turca está em alta, apesar de estar em uma trajetória bastante saudável para padrões turcos - fazia mais de um ano que o indicador acumulado em 12 meses estava em um dígito, chegando a cair para a casa de 7%. Mas depois deu uma virada, e está em 9,86% no acumulado em 12 meses. A inflação surpreendeu nos últimos dois meses. Alguns atribuem ao câmbio, mas para isso o repasse da desvalorização para os preços teria que ocorrer em 15 dias. Houve um aquecimento de demanda, sem dúvida, e os juros reais caíram para 5% em um momento em que a economia estava acelerando demais. Enquanto a inflação brasileira mostra que o BC foi ultraconservador na redução dos juros, os números na Turquia indicam que o BC talvez tenha sido exageradamente otimista.

Valor: O BC da Turquia acertou ao aumentar os juros em 1,75 ponto percentual na semana passada, para 15% ao ano?

Eris: O aumento dos juros foi importante para a recuperação da credibilidade do BC. Eles optaram por dar um choque de juros, em vez de elevações graduais. Acho que até foi correto, porque é um novo BC, com algumas figuras controversas. O mercado levou um choque, porque os analistas não acreditavam numa elevação tão forte. Se o aumento vai ser suficiente, vamos ter que esperar para ver. Mas foi um ato na direção correta. Enfim, quando você compara o Brasil e a Turquia, a Turquia tem que se ajustar mais à nova realidade externa, de maior volatilidade, enquanto o Brasil está numa situação mais tranqüila.

Valor: A Turquia errou e o Brasil acertou na política econômica?

Eris: Acho que os dois erraram, embora seja mais fácil dizer isso a posteriori. Enquanto a política monetária aqui foi excessivamente conservadora, lá foi excessivamente otimista. E é importante dizer que a Turquia não está numa situação de falência. É simplesmente uma situação em que a política macroeconômica vai ter que ser ajustada e provavelmente a moeda turca vai ter que se sustentar nesses novos patamares, o que deve resultar numa melhora significativa em conta corrente ao longo do tempo. Vai haver uma desaceleração econômica, uma inflação mais elevada por algum período, mas acho que não vai haver uma recessão. É possível que o país cresça no mesmo ritmo do Brasil.

Valor: A União Européia aprovou o começo das negociações para a entrada da Turquia no bloco. De que modo isso deve impactar a economia do país?

Eris: Uma coisa é iniciar as negociações, e outra é entrar. O período previsto para a entrada da Turquia na UE, se tudo correr bem, é de oito a dez anos. A Europa vai ter que decidir se vai aceitar como um de seus membros um país em que a maior parte da população é muçulmana, que é relativamente pobre em termos de renda per capita e é grande em termos de tamanho e população. Em termos de impacto econômico, a perspectiva de entrada na UE é um diferencial em relação a outros emergentes, mas isso já está em grande parte refletido nos preços, ainda que seja uma notícia positiva a mais.

Valor: Qual a real dimensão da turbulência financeira das últimas semanas?

Eris: Há um grupo que tenta atribuir tudo o que nós estamos assistindo a um erro de comunicação por parte de Ben Bernanke (presidente do Fed, o BC americano), enquanto outros tentam atribuir simplesmente a um ajuste do mercado. A primeira pergunta que deve ser feita é se há um desequilíbrio econômico no mundo ou se nós estamos falando de novo de um exagero dos mercados. Se for um movimento especulativo ou um erro de comunicação de Bernanke, é transitório. Mas, se for realmente um desequilíbrio, o processo pode ser mais longo e doloroso. Acho que a segunda hipótese é correta.

Valor: Nós estamos assistindo o primeiro capítulo de uma grande crise internacional?

Eris: Eu achava que 2007 ia ser um ano difícil, porque os mercados estavam se esticando demais, mas as coisas se anteciparam um pouco, também porque alguns mercados, como os de commodities, subiram demais. Para mim, um fato muito claro é que o mundo está crescendo acima de suas possibilidades por três anos. Não é possível sustentar essa trajetória de crescimento. O déficit em conta corrente americano injeta ao mundo uma liquidez equivalente a 6% a 6,5% do PIB dos EUA por ano, o que é muita coisa. Nós temos um desequilíbrio global que de algum modo terá que ser resolvido, e o resultado final será um crescimento global menor. Como isso vai ser distribuído dependerá das políticas econômicas de cada país e do alinhamento de moedas, principalmente a da China, se o yuan vai se manter nos patamares atuais ou haverá uma valorização maior. Os próximos 12 a 18 meses serão um período difícil para o mundo.

Valor: O Brasil vai ser o grande ganhador entre os emergentes, ou o que vai perder menos?

-------------------------------------------------------------------------------- Quando a poeira baixar, as perdas do Brasil deverão ser inferiores à média dos países emergentes" --------------------------------------------------------------------------------

Eris: Quando a poeira baixar, as perdas do Brasil serão inferiores à média dos emergentes. A Turquia, entre os mercados emergentes, é quem tem maiores ajustes a serem feitos. Mas, por outro lado, não é uma situação em que o país vai cair numa crise absoluta. Não é uma situação como a das crises dos anos 90. O mais importante é entender que o problema não está nos mercados emergentes. O grande diferencial dessa crise é que a origem está nos países centrais, e não nos periféricos. No fundo, se os EUA ajustassem sua política fiscal e a China admitisse a valorização de sua moeda, o mundo que resultaria seria muito favorável para os mercados emergentes. Em um certo sentido, os países emergentes fizeram sua lição de casa, muito mais que os países centrais, principalmente os EUA.

Valor: A grande crise ocorrerá ainda em 2006?

Eris: É uma questão muito difícil, que depende muito do que ocorrer com a política fiscal americana, se ela vai ser mais contracionista daqui para a frente. Se isso não ocorrer, acho que a política monetária americana será bem mais apertada do que a atual nos próximos 12 meses. O resultado final, que tem que ser um crescimento americano menor, e uma expansão global menor, não será obtido com juros nos EUA de 5% ao ano. Mas se a política fiscal americana colaborasse um pouco mais, poderíamos ter uma situação um pouco diferente da de hoje. O que faz a situação mais complicada é que os ajustes de política monetária são sempre mais bruscos e imprevisíveis porque os mercados reagem violentamente a isso.

Valor: E como fica o Brasil?

Eris: Em princípio o Brasil não precisa aumentar os juros, mas eles devem cair mais lentamente daqui para a frente. A ata do Copom deu sinais de que na próxima reunião pode haver uma redução de 0,25 ponto percentual. Depois pode até haver uma perda. Sinceramente, mesmo sem a questão do cenário externo, dado o perfil do BC, os mercados estavam excessivamente otimistas em relação à política monetária.

Valor: Uma Selic de 13,5% a 14% no fim do ano é difícil?

Eris: Acho dificílimo. Eu já achava isso antes da crise externa. Com a crise, é mais difícil. Nós perdemos uma enorme janela de oportunidade, não há dúvida. Olhando daqui para a frente, é difícil ver os juros muito abaixo de 15%. O cenário externo teria que melhorar muito.

Valor: O sr. vê risco de aumento dos juros por aqui no curto prazo?

Eris: Não, porque a inflação está abaixo da meta e as pressões inflacionárias são extremamente baixas. Mas, falando do Brasil nos próximos 18 meses, o país tem problemas que o quadro externo só complica. Nós estamos assistindo a uma combinação agradável de crescimento de 4% e inflação abaixo da meta que se deve principalmente a dois fatores: uma política fiscal altamente expansionista, iniciada no quarto trimestre do ano passado, e uma valorização brutal do câmbio, que aparentemente chegou ao fim com a crise externa. O câmbio coloca a inflação lá em baixo e a política fiscal dá gás ao crescimento. Além disso, o dólar barato leva a um aumento do salário em termos reais. Olhando para 2007, o cenário que eu enxergava já era completamente diferente mesmo antes da crise externa. Enquanto a política fiscal em 2006 foi expansionista em relação a 2005, com o superávit primário caindo de mais de 5% do PIB para 4% do PIB, em 2007 ela deverá ser mais contracionista ante 2006.

Valor: E qual deve ser a influência do setor externo?

Eris: O superávit comercial já começou a dar sinais de piora. Nos últimos anos, nós tivemos um setor externo muito favorável ao crescimento e à inflação. No segundo semestre deste ano e no primeiro semestre de 2007, ele tende a ser contracionista em termos de atividade econômica. Com a crise externa, isso fica ainda mais claro. Para o ano que vem, nós teremos política fiscal, um pouco mais adiante, e setor externo, desde já, como fatores contracionistas sobre o PIB. Além disso, o câmbio deve ter algum impacto inflacionário sobre os preços. Como a crise externa deve continuar, a margem de manobra do BC em termos de queda dos juros vai diminuir bastante, o que é um fator a menos para estimular o crescimento.

Valor: Quais são as perspectivas para o Brasil em 2006 e em 2007 em termos de crescimento?

Eris: Acho que em 2006 o crescimento pode chegar a 4%, a menos que o setor externo piore muito rapidamente. Para 2007, porém, vai ser menor, com a inflação de novo acima do centro da meta, o que deverá fazer o BC ser mais cauteloso. Nós sempre tivemos uma postura mais cautelosa em relação à queda dos juros, porque achávamos que a economia se aqueceria ao longo de 2006 e o BC, dado o seu perfil, recuaria e não aceleraria a queda dos juros. Além disso, a agricultura não vai ter uma performance brilhante. Em 2006, deve ser melhor do que em 2005, porque houve quebra de safra no ano passado, mas em 2007 o crescimento agrícola provavelmente vai ficar bem abaixo do de 2006.

Valor: Qual o principal desafio para o próximo governo?

Eris: É a questão fiscal. E o mais importante não é se o superávit primário será de 4%, 4,25% ou 4,5% do PIB. O fundamental é como recuperar a capacidade de investimento do setor público. Esse é o grande drama do Brasil. Eu só enxergo crescimento saudável e sustentado se nós recuperarmos essa capacidade. Nos últimos anos, ocorreram algumas coisas boas no setor público como a responsabilidade fiscal, mas a pior coisa foi que aumentamos a carga tributária 10 pontos percentuais ao longo dos últimos dez anos, para 37% do PIB, e ao mesmo tempo baixamos a taxa de investimento. No caso do governo federal, ele está praticamente zerado (em 2005, totalizou apenas 0,5% do PIB). Isso vai exigir cortes de gastos de custeio, para que se aumentem investimentos.

Valor: O Tesouro errou quando decidiu isentar os investidores estrangeiros na aplicação em títulos públicos para alongar a estrutura a termo da taxa de juros?

Eris: O timing foi errado, não por causa da crise que veio depois. Você estava naquele momento preocupado com o nível do dólar, tanto que o Tesouro e o BC estavam comprando dólares. E aí você toma uma medida que vai aumentar o fluxo, ainda que não tanto quanto eles disseram que era. Por que tomar aquela medida naquele momento, por que não esperar um momento em que o dólar estivesse numa tendência de alta, que era a previsão de todos os analistas que acreditam que o câmbio tem algo a ver com saldo comercial? Aí sim a medida que poderia ser útil, embora eu não seja daqueles que acham que graças a isso nós vamos ter a estrutura a termo da taxa de juros. Não havia curva longa porque não havia disposição dos investidores para alongar, tanto que na primeira crise nós vimos o que ocorreu. E eu sou muito cético em relação a usar medidas de tributação para definir curva longa, porque eu acho que não é a diferença entre a taxa bruta e a taxa líquida que faz a curva. O que faz a curva é haver mais confiança na economia.

Valor: O Tesouro fez bem em recomprar as NTN-Bs (títulos atrelados ao IPCA) quando houve maior turbulência?

Eris: Acho que, naquele momento, ele atuou bem. O problema não era tanto de salvar os detentores dos títulos, mas de ajudar o mercado a definir preços. Há momentos em que é necessário atuar, principalmente quando há queda muito forte de liquidez.

Valor: Há quem diga que o problema não foi a isenção tributária, mas a falta de uma regulação que permitisse um número maior de investidores a aplicar nesse mercado? O sr. concorda?

Eris: Primeiro, volto a dizer: acho que o timing da medida foi errado. Segundo, achar que essa medida ia permitir ao Brasil dar um salto e ter uma curva de juros até 2050, é bobagem. Esses analistas não deixam de estar certos, porque a falta de liquidez é um problema, mas isso não invalida as duas primeiras críticas que eu fiz.