Título: Em 100 dias no BCE, Draghi muda a sorte da zona do euro
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Fonte: Valor Econômico, 13/02/2012, Finanças, p. C2

O refeitório da sede do Banco Central Europeu (BCE) em Frankfurt, com seu tapete cor de laranja e obras de arte contemporânea, tem sido o cenário de inúmeras reuniões de cúpula desde o lançamento da moeda única europeia há 13 anos. Mas quando a história da crise da zona do euro for escrita, um almoço em 25 de novembro que contou com a presença de 25 presidentes-executivos dos maiores bancos da Europa, organizado por Mario Draghi, o novo presidente do BCE, deverá estar entre as mais importantes.

Os convidados ansiavam por medidas do BCE, reclamando do aumento dos problemas de liquidez. Um deles lembra que havia no ar uma sensação de medo. A escalada da crise da dívida soberana havia paralisado os mercados financeiros, privando os bancos de recursos de financiamento cruciais; o risco de um desastre que teria reflexos na economia mundial aumentava muito. "O importante é restabelecer a confiança", disse Federico Ghizzoni, presidente-executivo do UniCredit da Itália, ao "Financial Times" antes da reunião em Frankfurt.

Para Draghi, a mensagem era incômoda. Apenas duas semanas antes, o ex-presidente do banco central italiano havia assumido o comando do BCE e não parecia ser um ativista em termos de planejamento econômico. "Ele estava muito cauteloso - e com razão", diz um banqueiro que o conhece. O BCE não iria amparar as finanças dos governos, anunciou Draghi.

Um programa de compra de bônus soberanos lançado por seu antecessor Jean-Claude Trichet seria duramente limitado. Os políticos é que teriam de resolver a crise, com medidas como a austeridade fiscal, exortou. Draghi estava muito preocupado com as políticas inquietantes da zona do euro e atento para não irritar ainda mais os céticos líderes da Alemanha e seu poderoso Bundesbank, que estavam preocupados com os riscos que o BCE já havia assumido para seu balanço.

Mas mesmo enquanto seus convidados bebiam vinho branco da região próxima de Pfalz, naquela quarta-feira de meados de novembro, Draghi - que na semana passada completou 100 dias no comando do BCE - solidificava uma ideia que iria mudar a sorte da zona do euro, ou pelo menos dissipar a impressão de que ela estava à beira de um colapso. Mais tarde, convencido pelas conversas com os banqueiros de que haveria uma chance de sucesso para ela, Draghi e os colegas do conselho executivo do BCE elaboraram os detalhes de uma oferta sem precedentes para os bancos de empréstimos baratos com duração de três anos, nas quantidades desejadas por eles.

"O objetivo era proporcionar uma muralha de dinheiro" para proteger o sistema bancário e impedir uma versão europeia do colapso do Lehman Brothers em 2008.

O efeito da operação de refinanciamento de longo prazo, aprovada pelo conselho diretivo de 23 membros do BCE em 8 de dezembro, foi dramático. Pouco antes do Natal, 523 bancos tomaram emprestado um total de €489 bilhões - o equivalente a cerca de 5% do PIB da zona do euro. Ao fazer isso, eles revelaram o Draghi tomador de decisões, pragmático e ligeiro. A crise está longe de ser resolvida - o endividamento da Grécia ainda poderá voltar a mergulhar a zona do euro em turbulências. Mas Draghi se mostrou capaz de conseguir tempo. "Todo mundo pensava que ele seria conservador, mas ele entrou com tudo", diz Martin Lück do UBS em Frankfurt.

De uma só vez o BCE proporcionou recursos aos bancos para a cobertura do refinanciamento de bônus que vencem no primeiro trimestre deste ano. O reforço na confiança descongelou alguns mercados financeiros e levou a uma queda nos custos dos empréstimos para alguns países assolados pela crise. No Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, no mês passado, Draghi disse que a iniciativa do BCE "evitou um aperto de crédito muito grande". O sucesso da operação foi ainda mais surpreendente porque os mercados e os políticos da zona do euro inicialmente não perceberam seu significado, concentrando-se em vez disso no programa de compra de bônus iniciado por Trichet em maio de 2010, no começo da crise grega.

Apesar dos comentários que fez em contrário, a expectativa era de que Draghi iria incrementar o programa. Opções foram discutidas no BCE e surgiram nas conversas com os banqueiros no almoço de 16 de novembro. Em um pronunciamento feito no Parlamento Europeu em 1º de dezembro, ele pareceu estabelecer seus termos para uma mudança de política, conclamando para um novo "acordo fiscal" para a zona do euro que comprometesse os políticos com regras mais duras para as finanças públicas.

Na verdade, Draghi tinha grandes restrições às compras de bônus, que desde então ele vem tentando eliminar. Quando Trichet ampliou o programa em agosto, passando a cobrir também os bônus italianos e espanhóis, os efeitos positivos tiveram vida curta. Silvio Berlusconi, o então primeiro-ministro italiano, quebrou as promessas de reforma. Draghi não teve medo de dizer aos governos o que eles deveriam fazer - mas ele estava determinado a impedir que o banco central, supostamente independente, de fazer conchavos com políticos.

Houve outro motivo para o ceticismo de Draghi com as compras de bônus. O Bundesbank as via como perigosamente próximas de acabar com uma proibição da União Europeia de os bancos centrais financiarem seus governos, o que era tido como uma salvaguarda contra o desregramento fiscal. Draghi havia visto como o conselho havia se dividido sob a presidência de Trichet e estava particularmente interessado em manter os alemães ao seu lado. Ele precisava encontrar uma outra saída para a zona do euro.

São variados os relatos sobre os graus de pressão exercidos pelos banqueiros presentes no almoço de novembro para uma operação de refinanciamento de longo prazo de três anos. As pressões sobre eles certamente eram grandes, ampliadas pelas exigências de capital mais duras impostas pelas autoridades reguladoras europeias. Além de Ghizzoni do UniCredit, também participou do almoço Alfredo Sáenz, presidente-executivo do Santander da Espanha - embora Josef Ackermann, o presidente-executivo do Deutsche Bank tenha sido uma ausência notável.

Mas a ideia do BCE de ir além do tradicional fornecimento de liquidez de curto prazo não foi nenhuma novidade - e já se trabalhava com a possibilidade de uma operação de refinanciamento de longo prazo de vários anos. Após o colapso do Lehman Brothers, o BCE desistiu do sistema pré-crise em que os bancos faziam lances por liquidez e atendia toda a demanda. Em maio de 2009 ele estava temporariamente preparado para oferecer empréstimos por um ano.

Para alguns "insiders" do BCE, isso era o equivalente da zona do euro ao "afrouxamento quantitativo" implementado nos Estados Unidos - estimular a economia, mas por meio do setor bancário, em vez das compras de ativos. "Todo o conceito de contornar as regras europeias e fazer o "afrouxamento quantitativo" sem chamá-lo de "afrouxamento quantitativo" foi algo extremamente engenhoso - mas foi ideia de Trichet", afirma a professora Lucrezia Reichlin da London Business School, ex-diretora de análises do BCE.

No último verão europeu (terceiro trimestre de 2011), o staff do BCE havia preparado instruções sobre as opções de novas medidas. Um dos últimos atos de Trichet foi reintroduzir as operações de refinanciamento de longo prazo (LTRO, na sigla em inglês) de um ano. No entanto, a adesão foi baixa. Um cálculo de Draghi, apoiado em suas conversas com banqueiros, foi de que empréstimos de três anos fariam uma diferença decisiva, encaixando-se melhor na estrutura de vencimento dos financiamentos dos bancos e seus empréstimos para a economia real.

Além disso, oferecer condições favoráveis - incluindo uma taxa de juro estabelecida na média da taxa referencial do BCE ao longo de três anos - significou que haveria mais chances de adesão dos bancos. "Os bancos não recorrem à liquidez por um ano por causa do estigma atrelado a ela - mas não recorrer ao plano de três anos seria uma estupidez", afirma uma pessoa que participou da reunião de novembro. A ideia de que os bancos da zona do euro poderiam usar os recursos para bancar a compra de bônus de alto rendimento de governos em dificuldades, foi discutida em várias ocasiões por membros do conselho mas não eram parte da justificativa oficial.

Alguns ainda se preocupavam com o que poderia acontecer em três anos, quando os recursos teriam de ser pagos, ou com os perigos de se criar riscos de inflação ou bolhas futuras no mercado financeiro. Mas o importante é que houve pouca resistência do Bundesbank. Ele teria preferido termos menos generosos, mas não teve como discutir que a função do banco central é proporcionar liquidez adequadas a bancos solventes. Jens Weidmann, presidente do Bundesbank, alertou recentemente que a provisão de uma liquidez generosa poderá encorajar os bancos a se envolver em negócios arriscados e criar perigos inflacionários, mas ele não vem tentando impedir o plano de Draghi.

O presidente do BCE - que foi eleito depois que a primeira escolha do governo alemão, Axel Weber, então presidente do Bundesbank, saiu da disputa um ano atrás - vem demonstrando habilidade de outras formas. Mudanças de regras em que ativos bancários podem ser usados como garantias para a obtenção de liquidez no BCE deverão aumentar significativamente as quantidades de dinheiro que eles poderão tomar emprestado. Ele também cortou a principal taxa de juro do BCE duas vezes, em um quarto de ponto porcentual, devolvendo-a ao patamar recorde de baixa de 1% registrado no período mais agudo da recessão de 2009.

Nenhuma alteração nos juros é esperada para a reunião desta quinta-feira do conselho diretivo do BCE. No entanto, o último corte, em dezembro, surpreendeu muitos do conselho - na semana passada, o BCE manteve a taxa básica em 1% ao ano, mas flexibilizou as garantias que os bancos podem apresentar para ter acesso às linhas de liquidez.

Em dezembro, Draghi não havia pressionado por uma redução e seu staff não estava preparado para tal eventualidade. Trichet teria buscado um consenso maior no conselho; Draghi ficou com a maioria simples.

"Ele não está se mostrando tímido - não tem sido o que você poderia esperar de um italiano nomeado, em vez de um alemão sob a égide do Bundesbank", afirma Jean Pisani-Ferry, diretor da consultoria Bruegel em Bruxelas.

O estilo administrativo despojado de Draghi reflete os anos entre 2002 e 2005 que ele passou no Goldman Sachs, após comandar o Tesouro italiano e antes de entrar para o banco central italiano. Ele prefere uma linguagem franca ao linguajar tortuoso dos bancos centrais. Ele delega mais poderes que Trichet e colegas prolixos são alvo de reprovações bem humoradas. Uma reunião do conselho diretivo no fim de janeiro, marcada para a manhã de uma quinta-feira, foi resolvida no jantar da noite anterior.

O foco agora está em uma segunda LTRO de três anos esperada para este mês. Segundo banqueiros, a demanda poderá ser até duas vezes maior que a de dezembro. Para Draghi, enquanto isso, os desafios estão longe do fim. Liderados pela chanceler alemã Angela Merkel, políticos da zona do euro firmaram um "acordo fiscal" para impor disciplina aos gastos públicos dentro das linhas propostas pelo presidente do BCE - mas não sugeriram mais medidas do banco central em resposta. No entanto, mesmo que a crise grega seja conduzida com sucesso, o BCE poderá ter de cortar mais as taxas de juros para evitar uma recessão profunda na zona do euro ou prejudicar as forças deflacionárias. As compras de bônus soberanos ainda poderão ter de ser intensificadas.

As fraquezas estruturais em muitas economias da zona do euro e as falhas na construção da moeda única continuam crônicas. A LTRO de três anos agiu meramente como um "analgésico", alerta Jörg Krämer do Commerzbank em Frankfurt. Draghi poderá tentar preservar a reputação de cauteloso mas suas ações é que vão contar. Conforme acrescenta Krämer: "É sempre melhor olhar para o que as pessoas fazem, e não para o que elas dizem". (Tradução de Mario Zammarian)