Título: Alemanha é generosa, mas países têm de fazer a lição de casa
Autor: Saccomandi,Humberto
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2012, Especial, p. A12

Os prédios em chamas em Atenas não são uma boa propaganda para a Alemanha. A potência europeia vem sendo criticada por exigir dolorosas medidas dos países mais afetados pela crise, enquanto ela própria atravessa um período de prosperidade e pujança econômica. O ministro das Relações Exteriores alemão, Guido Westerwelle, rejeita essas críticas. Diz que seu país se mostrou generoso durante a crise, mas que "não faz sentido dar dinheiro sem resultados".

E quais são os resultados pedidos? A resposta alemã é: equilíbrio nas finanças públicas, para restaurar a confiança dos mercados, e reformas estruturais, para dar mais competitividade aos países.

Aos poucos, a Alemanha vai conseguindo esses resultados. A União Europeia (UE) aprovou recentemente um pacto fiscal que impõe limites ao déficit e ao endividamento público, com sanções previstas para os infratores. Os países precisarão inserir essas regras nas suas Constituições. A Grécia aprovou no domingo um amplo pacote de corte de gastos públicos.

E países como Itália, Espanha, Portugal e Grécia (todos com novos governos) estão aprovando a toque de caixa amplos pacotes de reformas, com elevação da idade de aposentadoria e revogação de antigos benefícios trabalhistas.

Mas o preço tem sido um aumento do sentimento antialemão na região. Em entrevista ao Valor ontem, em Brasília, a única vez em que Westerwelle se alterou foi ao ver uma página de um jornal grego com uma ilustração da premiê Angela Merkel vestida de nazista. "Isso não é representativo do povo grego", minimizou o ministro.

Westerwelle ficará três dias no Brasil, passando por Brasília, São Paulo (hoje) e Rio (amanhã). A visita é uma preparação para a viagem da presidente Dilma Rousseff à Alemanha, em março. Merkel deverá vir ao Brasil para a Rio+20.

Brasil e Alemanha vivem uma fase de intensa colaboração, política e econômica. Os dois países pleiteiam uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e têm posições convergentes nos principais temas, como a governança global. A Alemanha, que já é o país que mais recebe pesquisadores brasileiros nas áreas de exatas, deve receber 10 mil estudantes brasileiros como parte do programa Ciência sem Fronteira.

A visita de Westerwelle ocorre depois de um importante discurso no qual ele delineou o que chamou de novos centros de poder global e novas potências de transformação, entre as quais o Brasil.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista exclusiva.

Valor: A Alemanha deveria, ou poderia, ser mais generosa em relação aos países afetados pela crise na Europa?

Guido Westerwelle: Acho que a Alemanha é muito generosa e mostramos uma notável solidariedade. Mas nós queremos que esses países que precisam de solidariedade façam a sua lição de casa. Não faz sentido dar dinheiro sem resultados. Há uma relação muito clara entre solidariedade e solidez.

Valor: Para a crise de liquidez, é preciso fornecer liquidez. Para a crise de confiança, a receita alemã tem sido austeridade. Isso não é contraditório?

Westerwelle: Não concordo que essa seja uma crise de liquidez. É uma crise da dívida, que se tornou uma crise de confiança. Se queremos resolver ambas, é preciso, de um lado, trabalhar na austeridade. Mas isso apenas não vai bastar. Então é preciso avançar nas reformas estruturais, de modo a sanar a falta de competitividade de vários países europeus. Isso é crucial.

Valor: Como esses países podem ganhar competitividade?

Westerwelle: Já sugeri algumas reformas estruturais. Na Grécia, isso significa reformas e reconstruir o sistema de coleta de impostos. Não é apenas a alíquota média de imposto que importa, mas o fato de você conseguir cobrar o imposto. É preciso um sistema pelo qual os contribuintes, inclusive importantes contribuintes, paguem o imposto devido à sociedade. Esse é um exemplo, que teria um efeito direto na receita fiscal da Grécia.

Valor: Isso ajudaria pelo lado fiscal, mas não necessariamente tornaria o país mais competitivo. Como a Grécia ou Portugal podem se tornar mais competitivos e competir com a Alemanha, por exemplo?

Westerwelle: No campo das energias renováveis, por exemplo, que é a tecnologia do futuro. Conheço bem a Grécia, gosto muito do país, e queremos ter a Grécia a bordo da UE e do euro. Por isso, é preciso pedir a eles essas reformas.

Valor: O sr. diz que as reformas estruturais podem dar resultado rápido, mas isso não é claro...

Westerwelle: Como não? Vocês no Brasil são exemplos disso. Veja o histórico de sucesso do Brasil.

Valor: Mas esse é um histórico de quase 20 anos. Não de 2 anos.

Westerwelle: É claro que, para ter sucesso, você precisa trabalhar, ano após ano. As pessoas no Brasil realmente sabem o quão respeitadas elas são hoje no mundo? Vocês são a melhor prova de que [as reformas estruturais] funcionam.

Valor: No médio e longo prazos. Mas, para um país como a Grécia, que está no quinto ano consecutivo de recessão...

Westerwelle: É por isso que nós aprovamos um pacote de solidariedade. É claro que, se houver um diferencial de tempo, nós estamos prontos para ajudar. Para a Alemanha, € 200 bilhões [a parcela garantida por Berlim no fundo de estabilização europeu] representam o equivalente a US$ 1 trilhão para os EUA. Isso claramente é solidariedade.

Valor: No curto prazo, há dois modos de um país ganhar competitividade: desvalorização ou deflação. Os países que estão no euro não podem desvalorizar. E a deflação é um processo doloroso, pois implica a queda nominal de salários e aposentadorias, o que os países da Europa estão fazendo. Esse é um processo arriscado. Na Argentina, a população derrubou em 2001 um governo que tentava um ajuste por meio de deflação. O sr. teme que isso possa ocorrer na Europa?

Westerwelle: Se fizermos nosso trabalho, se a Grécia implementar as reformas que eles acabaram de decidir no Parlamento, se tivermos resultados tangíveis, acho que poderemos superar essa crise rapidamente. Estou convencido disso. É possível, é factível. A Grécia é um país maravilhoso, mas representa apenas 2% da economia da UE, de modo que podemos resolver isso. E não há dúvida sobre a solidariedade alemã. Estamos claramente comprometidos. A UE e o euro são nosso destino e nosso desejo. Queremos administrar essa crise, mas você só pode ajudar alguém se esse alguém permitir isso.

Valor: Os países mais afetados na Europa são os perdedores da globalização? Afinal, eles não têm recursos naturais nem tecnologia.

Westerwelle: Eu rejeito absolutamente isso. Está errado. O Brasil, por exemplo...

Valor: Tem recursos naturais...

Westerwelle: Sim, tem recursos, é um país do tamanho do continente europeu, tem milhões de jovens que pedem por educação. Agora veja esse encantador, adorável e simpático país que é a Alemanha. Não tem recursos naturais...

Valor: Mas tem conhecimento.

Westerwelle: Sim, e isso hoje em dia é o que realmente conta, conhecimento, educação, pesquisa. Isso é a chave de tudo.

Valor: Mas os países que hoje não têm recursos naturais nem tecnologia, eles são os perdedores?

Westerwelle: Se você não trabalhar... Na Alemanha temos um ditado que diz que, se você não acompanhar o seu tempo, será conduzido por ele. Na Europa temos o exemplo da Finlândia, que é um país pequeno, estava atrasado nos anos 90 e agora está bem. Não há garantias para ninguém nos tempos da globalização. Esse é o princípio, a característica da concorrência. Mas é absolutamente possível chegar lá. E um dia você tem de começar, com educação, pesquisa, investimentos na formação das novas gerações. Não se pode permitir um desemprego de 40% entre os jovens [como na Espanha]. Não podemos aceitar isso na Europa. E você nunca vai reduzir o desemprego entre os jovens sem reformas, mais concorrência, melhor educação e mais pesquisa.

Você disse que isso leva tempo. É claro que sim, o sucesso sempre exige tempo. Mas é factível, e acho que há uma via rápida. Na Alemanha, por exemplo, dez anos atrás éramos chamados de "o doente da Europa" pela mídia internacional.

Valor: O projeto europeu sempre foi reduzir os desequilíbrios entre os países. Agora, em poucos anos, esses desequilíbrios estão crescendo dramaticamente. O projeto europeu fracassou?

Westerwelle: Não, Mas você não vai fortalecer os países fracos enfraquecendo os países fortes. Acompanhei essa discussão sobre a força da Alemanha e a nossa capacidade. Mas imagine que, se nossa economia não estivesse tão forte hoje, nós não teríamos como por à mesa € 200 bilhões.

Valor: Por outro lado, a Alemanha tem um enorme superávit comercial com a maioria dos parceiros europeus. Isso não é um desequilíbrio?

Westerwelle: Acho que é necessário apoiar e fortalecer os países mais fracos, e não o oposto, enfraquecer os mais fortes. Isso seria contraproducente. A Europa precisa de mais motores [além da Alemanha]. Mas a ideia de que a primeira competição é entre os países europeus é um pensamento antiquado. A UE é a nossa resposta aos novos centros de poder, à globalização e à concorrência global.

Valor: Isso não seria grave se não houvesse uma crise da dívida. Mas se o país enfrenta uma crise da dívida, ter um grande déficit na balança de pagamentos é um problema.

Westerwelle: Posso repetir o que, do meu ponto de vista, é lógico e óbvio. Não vamos fortalecer os mais fracos enfraquecendo os mais fortes. Isso não é possível.

Valor: Com o crescente desequilíbrio na Europa, a tendência é que pessoas migrem de países mais pobres para países mais ricos. A Alemanha está preparada para receber um fluxo de imigrantes?

Westerwelle: Todo cidadão europeu tem o direito de morar, estudar e trabalhar em qualquer país da união. Esse foi um dos ideais pelos quais trabalhamos e vamos defendê-lo. Tenho 50 anos e me lembro de quando não podíamos nos mover livremente. Viver numa União Europeia livre é uma coisa nova, e é muito bom. É uma vantagem para as novas gerações.

Vamos, por exemplo, convidar 10 mil bolsistas brasileiros para a Alemanha. Isso não é um desafio para nós, é uma oportunidade, um privilégio. Eles serão muito bem-vindos. Diga às pessoas no Brasil que os jovens estudantes são muito bem-vindos na Alemanha.

Valor: Há um crescente sentimento antialemão na Europa [mostro a primeira página do jornal grego "Democracia", que publicou na quinta-feira uma ilustração da premiê alemã, Angela Merkel, vestida de nazista]...

Westerwelle: Acho que não preciso falar a você, um jornalista, sobre alguns métodos que a mídia usa. Você acha que isso é representativo da Grécia?

Valor: Não sei. Mas não o preocupa que haja um crescente sentimento antialemão na Europa?

Westerwelle: Nós trabalhamos para melhorar a imagem da Europa na Alemanha e a imagem da Alemanha na Europa. Não levo isso [a ilustração de Merkel] muito a sério, pois não é representativo do povo grego. Há extremistas em todos os países. Na Alemanha temos também declarações públicas lamentáveis, muito agressivas, contra cidadãos europeus. Mas acho que não são representativas.

Valor: Veremos no futuro uma Europa mais alemã?

Westerwelle: Não busco uma Europa alemã. A minha ideia é ter uma Alemanha mais europeia.

Valor: O sr. é um liberal. Muitos culpam o excesso de liberalização, principalmente do setor financeiro, pela crise atual. É difícil ser um liberal hoje em dia?

Westerwelle: Eu estou aqui como ministro, não como representante do meu partido. Mas a crise da dívida é resultado de uma saturação do endividamento dos governos. Você simplesmente não pode gastar mais do que possui. E a crise da dívida de que estamos falando na Europa é apenas uma fase inicial. Teremos essa discussão em vários outros países [fora da Europa] se eles não entenderem que [o endividamento] não é uma fundação confiável para o crescimento.

Valor: A Alemanha se absteve, junto com o Brasil, na votação do Conselho de Segurança (CS) da ONU que aprovou a intervenção militar na Líbia. O sr. se arrepende dessa decisão?

Westerwelle: Votamos como o Brasil, a China e a Rússia. Éramos um terço no CS. Nós nos abstivemos, mas isso não significa que estávamos neutros nessa questão. Só não queríamos participar com soldados alemães nessa missão. Já expliquei isso várias vezes. Quero apenas dizer que somos bons parceiros desses países, Egito, Líbia, Tunísia, que querem avançar nesse processo de transformação em direção à democracia, ao pluralismo e à tolerância religiosa.

Valor: O sr. apoiaria algum tipo de intervenção militar na Síria? Talvez uma missão de paz?

Westerwelle: Acho que as propostas recentes da Liga Árabe [de envio de uma missão de paz da ONU] são positivas e vão de encontro a uma maior cooperação com a ONU. Acho que esse é o caminho certo. Decidimos ampliar a pressão. Já posso anunciar que haverá uma nova rodada de sanções da UE contra a Síria no fim deste mês. Mas não posso falar mais sobre isso, pois o assunto será tratado nesta tarde [ontem] pelo CS da ONU.

Valor: Sanções parecem não estar fazendo o Irã recuar de seu programa nuclear. Para a Alemanha, a ação militar é uma opção no Irã?

Westerwelle: Não participamos desse tipo de discussão, pois achamos que as sanções estão começando a funcionar. Mais e mais as pessoas no Irã estão percebendo que o isolamento internacional, pelo qual o governo do presidente Mahmud Ahmadinejad é responsável, está custando a elas muito em termos de prosperidade. A ideia de esse governo iraniano ter armas nucleares realmente não é aceitável. Por isso, tento convencer mais países a participar das sanções. Quanto mais países adotarem as sanções, maior a chance de que elas tenham sucesso.

Valor: O sr. pedirá isso ao Brasil?

Westerwelle: Discutiremos o Irã, a Líbia, a Síria, todo o Oriente Médio. Mas não posso anunciar antecipadamente o que discutiremos.