Título: Na economia, Lula se afasta da utopia petista
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/04/2006, Brasil, p. A2

A cúpula do Partido dos Trabalhadores segue mostrando que não tem compromisso algum com a política econômica do governo Lula. Reconhece os avanços ocorridos nos últimos três anos, mas não os atribui às políticas que tanto criticaram ao longo de seus 26 anos de história. O pragmatismo que sobra nas ações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é mercadoria escassa no PT. Isso ficou ainda mais evidenciado no documento que o partido elaborou nos últimos dias, fixando diretrizes para a redação de um programa de governo com vistas à eleição de 2006.

No texto de dez páginas, ao criticar o "neoliberalismo" do governo Fernando Henrique, o PT ataca a própria obra. Na avaliação do partido, a gestão Lula na economia evitou uma catástrofe em 2003. Ora, essa ação nada mais foi do que redobrar a aposta feita por FHC: mais austeridade fiscal e monetária e realismo cambial. Guido Mantega tomou posse na Fazenda e não prometeu nada diferente disso. No Palácio do Planalto, a estabilidade alcançada é vista, com realismo, como o principal capital político de Lula na disputa pela reeleição.

Prevalece na retórica petista, no entanto, uma enorme dose de irrealismo. No documento, atribui-se em boa medida à política externa terceiro-mundista promovida pelo Itamaraty o sucesso das exportações brasileiras. Trata-se de um capricho da imaginação de alguém completamente descomprometido com os fatos.

Sem constrangimento, o PT celebra, 17 anos depois da queda do Muro de Berlim, o estatismo. "Deu-se vigoroso impulso às grandes estatais", informa-se no texto. Nos três anos da gestão petista, interromperam-se as privatizações e isso é dado como algo positivo no atual estágio da economia brasileira. Daí, apregoam-se inverdades. Uma delas: a eficiência petista, e não a circunstância dos juros altos, permitiu que as grandes estatais acumulassem "uma rentabilidade financeira que nunca tiveram". Se não consegue mudar a política econômica, o PT, pelo menos, empreende um sucesso aqui: privatização é palavra ausente no vocabulário de Lula.

No documento, critica-se o Estado mínimo que, segundo a cúpula petista, os governos anteriores, notadamente o de FHC, forjaram. O PT não reconhece que, em sua gestão, o Estado permanece mínimo, mas a carga tributária, que o governo aumentou, é máxima, um verdadeiro peso morto sobre os ombros dos cidadãos e do setor produtivo. Nos três anos da "reconstrução do Estado" anunciada pelo PT, quase nada mudou na correlação entre crescimento da máquina estatal e ampliação e melhora dos serviços prestados à sociedade. O documento não fala da necessidade de reformas para reestruturar esse mesmo Estado e, assim, colocá-lo a serviço preferencialmente dos que estão à sua margem, sem representação política e sindical (o que não é o caso nem do PT nem da CUT e, por assim dizer, do MST, uma vez que as entidades estão representadas e instaladas na máquina administrativa).

Na exegese petista, a imprensa é novamente alvo de preocupação. Diz o item 7 do documento: "A imprensa não sofreu nem sofre qualquer restrição, mesmo quando setores dela operam com indisfarçável parcialidade" . Indisfarçável, nesse caso, é o viés autoritário, a idéia de que a liberdade de expressão, prevista na Constituição, está sendo vigiada. É o caso de indagar-se: sofrerá a imprensa qualquer tipo de restrição, além das legalmente cabíveis, mesmo quando for absolutamente parcial?

-------------------------------------------------------------------------------- Na visão do partido, "mensalão" foi prebenda --------------------------------------------------------------------------------

Referindo-se de forma tácita aos escândalos em série ocorridos de um ano para cá, o documento reconhece que o PT e o governo erraram, embora use uma palavra elegante - prebenda (renda paga aos cônegos) - e inapropriada para designar "mensalão", propina, mesada: o mecanismo utilizado, segundo o próprio PT, para "construir uma base de sustentação governamental".

Duas frases adiante e se vê o velho PT: aguerrido, inflexível, arrogante. "(O partido) não mobilizou a sociedade. Ficou impotente e perplexo quando inteirou-se que membros de sua direção haviam enveredado pelo caminho da aventura (...)", diz o documento. É o caso de se perguntar: mobilização contra o quê? Contra a investigação das malfeitorias perpetradas por seus correligionários? A única mobilização possível, e esta foi abortada no nascedouro, com a deposição de Tarso Genro da presidência do partido, teria sido promover uma faxina interna que punisse os envolvidos nos casos de corrupção. Isso, definitivamente, não aconteceu. O PT não foi refundado.

Um item do documento do partido, se não for mera peça de retórica, merece elogio: "O programa de governo (para a eleição de) 2006 não se confunde com o programa do partido". Reconheça-se: trata-se de um avanço. Os petistas nunca entenderam que governo é governo, partido é partido. No primeiro ano da experiência de poder, seus dirigentes se reuniam no Planalto, posando para fotografias sem cerimônia. Sílvio Pereira, o então secretário-geral do partido, mesmo sem função oficial no governo, cuidava das nomeações na máquina pública e, por essa razão, transitava com grande desenvoltura pelos palácios e gabinetes de Brasília.

Delúbio Soares, o tesoureiro confesso do caixa 2 petista, participava de comitivas do presidente em viagens ao exterior. A confusão entre partido e governo era tanta que se permitiu a inscrição da estrela vermelha do PT nos jardins do Palácio da Alvorada. O que está sendo dito agora é, parafraseando José Genoino, que o PT é uma coisa e o governo é outra.

O governo Lula tem méritos reconhecidos, mais até do que se esperava dele em 2002. Não é a administração com que sonhavam os petistas, mas tampouco tem sido o caos apregoado pela oposição. O presidente não se envergonha dos avanços de sua gestão, especialmente, na economia, mas o fato é que seus seguidores no PT e muitos de seus ministros e assessores no Planalto não se reconciliam com o êxito justamente nessa área. Lula estimula essa contradição. Trata-se de um jogo em que ele governa da maneira que considera responsável e possível, enquanto seu partido faz críticas para a galeria petista, inconformada com uma realidade incontornável: governar a economia brasileira do jeito que o PT quer é uma utopia da qual o presidente parece ter se divorciado.