Título: Um saco de bondades não apaga o caldeirão de maldades
Autor: Lessa, Carlos
Fonte: Valor Econômico, 12/04/2006, Opinião, p. A17

Nos últimos meses o governo distribuiu um "saco de bondades". Os gestos generosos têm custo estimado, para o governo federal, em 2006, de R$ 27 bilhões. É meritório reforçar o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social para financiamento de casas populares; realizar um programa a fundo perdido que supere carências habitacionais de algumas famílias pobres; estimular patrões a assinar carteira de empregados domésticos; afastar o risco de quebra de vastos segmentos da agricultura brasileira; desonerar bens de capital; corrigir pensões e aposentadorias; elevar o salário mínimo, que protege os que têm carteira assinada, mais de 60% dos aposentados e permite recomposição de honorários dos autônomos e informais. No saco de bondades falta repor o salário do funcionalismo federal e as perdas estaduais com o ICMS, em apoio à exportação (Lei Kandir).

As bondades são insignificantes frente à brutal concentração de renda e riqueza dos R$ 163 bilhões de juros de dívida pública programados para este ano. É sabido que mais de 70% deste montante são apropriados por 20 mil famílias. Esta, sim, é a verdadeira avalanche de bondades para os ricos e muito ricos. E não é apenas deste ano. São mais de R$ 115 bilhões em relação aos R$ 27 bilhões de bondades aos "pigmeus". Mantega, em matéria fiscal, é tão conservador quanto Palocci. No Planejamento foi, em 2003, o primeiro a sugerir a elevação da meta de superávit fiscal de 3,75% para 4,25% do PIB. Na Fazenda, reitera: "O superávit primário é sagrado. (...) Será cumprido à risca". Anuncia que vai exigir das estatais federais maior contribuição para o superávit . Mantega comprimirá empresas para "compensar" gastos estaduais e municipais superiores aos previstos. Eleva a meta federal preventivamente, com medo de descumprimento de metas fiscais das outras unidades da Federação. Corta projetos de investimento público, que já são minúsculos.

Foi impressionante o terrorismo do "mercado" contra Mantega. O principal recado foi dado pelo presidente da Febraban. Márcio Cypriano já definiu a política econômica dos meses residuais da administração Lula: "Esperamos que a linha seja de continuidade da responsabilidade fiscal, liberdade cambial e políticas de metas de inflação". Com a ousadia dos tempos pós-modernos, o "Financial Times" fala da preocupação do "mercado" com o fato de o ministro Mantega não considerar necessária uma nova reforma da Previdência. O "mercado" teria encarado a declaração como um sinal para o desajustamento das contas públicas. Por trás da pressão está a memória do mercado do "Mantega pré-Fazenda", como crítico dos altos juros. Em dezembro de 2005, havia dito: "O Copom foi o principal responsável por essa desnecessária desaceleração [do crescimento]. O Banco Central errou a mão".

-------------------------------------------------------------------------------- Brasil tem um crescimento tão medíocre que, no ritmo da última década, levará mais de um século para dobrar o seu produto per capita --------------------------------------------------------------------------------

Mantega, na Fazenda, não assusta: Diz: "A política econômica não mudará. (...) O presidente Lula é o fiador desta política econômica. (...) Não deve mudar porque é a política econômica mais bem sucedida dos últimos 15 ou 20 anos no Brasil". De qualquer forma, Meirelles passou a ser o "ministro da Política Monetária". Pelas dúvidas, Mantega está "blindado" e os juros em mãos de "gente de confiança do mercado".

O Banco Central estima que o IPCA, em 2006, ficará em 4,6% e acha que o país poderia crescer algo em torno de 4%, mesmo com taxa Selic de 16,5%. Assim sendo, deixa no ar a idéia de que reduzirá a Selic para uns 15 ou 14% ao ano. E conduzirá o Brasil ao paraíso do crescimento com estabilidade. Mantega sugere crescimento de 4,5% em 2006; o ministro Furlan promete 5%. O Brasil entraria num ciclo de crescimento sustentado e a recuperação desse ano não seria um vôo de galinha.

Em final de 2006, a taxa de juros real básica seria de 10% ao ano. Continuaria sendo a mais elevada do planeta. Nossos spreads bancários são recordistas mundiais, superando os praticados em outros 126 países. Nossos rentistas continuarão felizes e os agentes financeiros continuarão sangrando famílias e empresas. É ininteligível a frase do ministro da Fazenda: "Se houve ou não exagero nos juros, isto é coisa do passado". Apesar da moderada queda da taxa básica, os juros médios cobrados pelos bancos subiram em fevereiro, em relação a janeiro deste ano. Com astúcia, os bancos se deslocam para crédito às famílias e pequenas e médias empresas.

O presidente está confiante no êxito da sua estratégia de "desenvolvimento". Acredita que, com fundamentos macroeconômicos e sedução, o investimento estrangeiro fluirá para o Brasil. Repetiu para empresários italianos que o Brasil oferece uma oportunidade "imperdível" de investimento. Para seduzi-los, ofereceu visto permanente para o empresário peninsular que trouxer U$ 50 mil. Portugal exige U$ 500 mil.

O presidente incorre em dois graves equívocos. Confunde aplicação financeira estrangeira com investimento produtivo. Investimento é radicalmente diferente. Se materializa em projetos que ampliam e modernizam a capacidade produtiva. O Brasil paga juros escandalosamente elevados e, como o Banco Central garante total liberdade de entrada e saída, somos um banquete para aplicadores financeiros do exterior. A empresa estrangeira somente investe quando percebe uma oportunidade lucrativa. Se o Brasil crescer, multiplicam-se oportunidades e as filiais que já estão aqui (mais de 400, das maiores corporações mundiais), farão investimentos produtivos. A filial estrangeira aplica financeiramente seus juros no Brasil, porém o mais provável é que os remeta para sua matriz investir em outras economias com dinamismo.

Dito de outra forma, o exterior não dinamiza um país; colhe oportunidades empresariais se o país for dinâmico. As agências de rating têm sublinhado o fato de que o Brasil tem crescimento medíocre. É tão medíocre que, no ritmo da última década, levaremos mais de um século para dobrar o produto per capita. Este ano, haverá a primeira redução de safra de grãos da última década. Sem investimento em infra-estrutura, não serão deslocados limites estruturais que estrangulam o Brasil. Os altos juros premiam o rentismo e inibem o investimento produtivo. O caldeirão de maldade brasileiro continua fervendo à espera que a galinha pule dentro.