Título: Vestiu smoking e ficou fora do baile
Autor: Nassif, Maria Inês
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2006, Política, p. A14

É uma profunda ironia, mas o PT chegou ao poder cindido devido a concessões que fez à sua história para guinar ao centro. Mas vestiu o smoking e foi confundido com o garçom. Depois de três anos e três meses de governo bem-comportado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o partido atraem, no mundo político, a ira de um discurso conservador que tem a intensidade da era pré-queda do muro de Berlim. O mundo financeiro, que pressionou o partido a fazer um considerável recuo programático, está com um pé fora.

O que sustenta Lula hoje é um voto avulso do eleitor pobre, indiscutivelmente mais atendido por esse governo do que por qualquer outro da história recente. O próprio PT não sustenta Lula. Talvez a única estratégia da oposição que efetivamente tenha dado certo foi a de sangrar o partido, mas isso produziu um descolamento entre a organização e seu principal líder. Atingiu o PT, mas deu a Lula um único caminho, arena onde pode ser mais difícil combatê-lo: o ex-metalúrgico deixou de ser uma representação partidária para tornar-se uma liderança pessoal. Nessa situação, o comportamento do eleitor é mais influenciado pelo carisma, que Lula efetivamente tem - e certamente nenhum tucano dispõe.

A oposição assumiu a estratégia de desqualificar o presidente Lula e seu partido, por despreparo. O discurso não é centrado na competência, ou falta dela, mas na qualificação "técnica": diplomas, conhecimento acadêmico e até falta de "berço". São sindicalistas que usaram a política para ascender socialmente, diz o discurso, e, desacostumados com o poder, incapazes de resistir a ele. Sucumbem fatalmente à corrupção porque estão deslumbrados com a nova posição.

Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso falou isso a primeira vez parecia se tratar de um deslize. Não foi. É um discurso que se presta à autopromoção desqualificando intelectualmente as demais forças políticas, exceto as que reconhecem a sua excelência. O PSDB teria o monopólio do conhecimento científico, técnico, e também o da civilidade: o único capaz de levar o país, com elegância ocidental, para o clube dos ricos. Pelo menos como convidado. Para o resto do país, que crê na democracia como possibilidade de alternância no poder, e para os demais intelectuais que não são tucanos, esse discurso não deixa de ser agressivo. Independente de serem ou não petistas.

-------------------------------------------------------------------------------- Pela lógica tucana, se Lula acertou, foi por sorte --------------------------------------------------------------------------------

Em abril, em uma entrevista a Veja, FHC desqualificou Lula pelo que ele não sabe. "Acho que ninguém precisa ter universidade no currículo para ser presidente. Afinal de contas, há muita gente com grau superior que não sabe nada. Mas acho importante que o político tenha aprendido algo. Ele tem de ler, tem de ter curiosidade intelectual. Porque, senão, você fica sem bases mais sólidas para discernir. O presidente Lula tem muita sorte. Não passou por nenhuma crise econômica com efeitos globais como as que tive de enfrentar. Não foi provado. (...)Não quero desmerecê-lo, mas ninguém sente que ele está no comando. O presidente Lula é tático, não é estratégico. Para ser estratégico, é preciso ter formação. É necessário dominar conceitos a partir dos quais é possível escolher determinados caminhos". E conclui com a afirmação que repetiria recentemente no programa Jô Soares: "Se você tem um certo preparo fica mais difícil deslumbrar-se. A capacidade de autocrítica é maior, tem-se mais noção da transitoriedade das coisas."

Pela ótica tucana, portanto, Lula acertou não pelos seus méritos, mas por sorte. Não errou por uma estratégia equivocada de governo, mas pela ausência dela, já que não tem alcance intelectual para traçar uma.

A crise moral do PT levou grande parte da intelectualidade a concordar com essas máximas conservadoras - há pouco tempo atrás seriam taxadas de politicamente incorretas - ou a se calar, com medo de ser confundida com a parte ruim do PT ou do governo. Mas a generalização desse discurso não atinge apenas o PT ou Lula. Na verdade, se pretende um arrastão ideológico, para tornar hegemônica a idéia de que o Brasil não pode existir sem o brilhantismo das mentes tucanas, abrigadas no PSDB ou nas universidades. Talvez este seja apenas discurso eleitoral para atrair as classes médias. Ainda assim é grave: a consolidação de um senso comum em torno desse pensamento é uma marcha-a-ré política num país que, bem ou mal, está aprendendo a conviver com a democracia.

Se o PT fosse um partido operário puro, ainda assim teria direito de chegar ao poder pelo voto. Mas não é. Existe uma massa encefálica considerável no partido, mesmo depois das defecções daqueles que se desiludiram com seus rumos. Em que saco Fernando Henrique vai colocar um Emir Sader, um Antonio Cândido, ou uma Marilena Chauí? E existe massa encefálica fora do PSDB e do próprio PT. Chico de Oliveira, desencantado com o partido, não se jogou nos braços tucanos, mas aderiu a outro, que se configura mais como antítese do PSDB do ex-presidente.

A arrogância intelectual pode ser pior do que o deslumbramento operário, mas o preocupante é que ela traz à luz e torna aceitável esse tipo de pensamento. Em algum momento - e eu perdi essa parte do filme - o preconceito social se incorporou à política brasileira e agora ameaça virar uso e costume. E, curiosamente, foi aquele PT que se enquadrou ao establishment o que deflagrou o furor conservador. De onde se conclui que elite não gosta de macacão, mesmo com o fraque por cima.

O mercado financeiro, que em 2002 entrou em convulsão por conta da suposição um radicalismo petista, gostou do governo Lula mas prefere pessoas de mais fino trato. Tome-se as reações de mercado à ascensão de Guido Mantega ao Ministério da Fazenda. A repórter Tatiana Bautzer, em matéria no Valor, relata teleconferência feita pela agência de risco Fitch Ratings. Foi ponto para o pré-candidato do PSDB, Geraldo Alckmin. Avaliou-se que Lula foi bonzinho, mas ainda embute o risco de voltar "às raízes". Alckmin teria a garantia de uma aliança PSDB-PFL e poderia ser "mais agressivo" em relação às reformas econômicas. O PT e Lula foram para o centro mas ainda são o alvo. Problemas de origem.