Título: Os párias brasileiros
Autor: Prado, Maria Clara R. M. do
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2006, Opinião, p. A19

Os números, impressionantes, parecem passar despercebidos: todos conhecem a gravidade do problema que se arrasta há décadas, mas talvez por isso, pela mesmice do tema, são poucos os que ainda se preocupam com a rápida deterioração que afeta a qualidade da educação pública no país.

A carga que vem do passado já é, por si, excessivamente pesada. O Brasil tem 16 milhões de analfabetos absolutos. Ou seja, temos dentro do país mais do que um Chile inteirinho, um Portugal e meio e quatro Irlandas de gente que não sabe ler e escrever. Dos 120 milhões de brasileiros com 15 anos de idade ou mais, um contingente de 70 milhões não possui o ensino fundamental (aquele que vai da primeira à oitava série) completo segundo informações oficiais do MEC.

Mas isso não é o pior quando se olha para os dados do presente. Eles esboçam um horizonte nada animador para as próximas décadas: 1) 4,3 milhões de crianças com idade entre 4 e 14 anos e 2 milhões com idade entre 15 e 17 anos estão fora da escola; 2) quase um terço dos alunos não consegue completar a quarta série do ensino fundamental na idade adequada de 11 anos; 3) 52% dos alunos da quarta série não dominam as habilidades elementares de matemática, e essa deficiência cresce para 59% na avaliação do aprendizado do português; 4) os alunos brasileiros do ensino médio ficaram em último lugar na avaliação em matemática realizada em 2003 em 40 países pelo Pisa, um programa da OCDE.

Todos esses são dados oficiais, largamente conhecidos. Fizeram parte da palestra apresentada há cerca de uma semana pelo senador Cristovam Buarque, em São Paulo, no workshop "Compromisso Todos pela Educação", composto por pessoas envolvidas com a educação no país.

O chamado "funil da perversão", que Cristovam sempre faz questão de mencionar, mostra uma realidade que não pode deixar as pessoas indiferentes: para 5,533 milhões de crianças matriculadas na rede pública de ensino em 2002, quase a metade, 2,852 milhões, conseguiu concluir a oitava série naquele ano. Por funil semelhante passam os adolescentes de 15 a 18 anos de idade no ensino médio. Só 1,88 milhão chega ao final do terceiro ano do ensino médio na rede pública.

A situação é ainda mais dramática quando se sabe que muitos dos que concluem a oitava série saem da escola marcados pela pecha de analfabetos funcionais, aqueles que sabem ler e escrever de maneira rudimentar. Passam de ano sem terem agregado conhecimento sobre noções elementares de disciplinas básicas como a matemática e a língua portuguesa, sem falar em ciências, história e geografia.

Ao invés de uma massa de brasileiros preparados para enfrentar o ambiente competitivo do mercado de trabalho no século XXI, o país está formando uma classe de párias que tende a ficar à margem do processo econômico, ainda que alguns tenham conseguido (aqueles que passaram pelo funil) concluir as etapas da educação básica.

-------------------------------------------------------------------------------- Números sobre a qualidade da educação mostram que o país está formando uma classe de párias que tende a ficar à margem do processo econômico --------------------------------------------------------------------------------

Todo o quadro aqui traçado não se esgota nos números levantados. Outras várias facetas - como o baixo nível de qualificação dos professores, a precariedade das instalações e do material de apoio ao ensino e a falta de fiscalização sobre a atuação das escolas - tornam a situação do ensino público no país a prioridade número um entre as muitas que estão a reclamar por solução.

Há, a rigor, um mistério a ser desvendado, pois o quadro que se tem da educação não combina com o montante de recursos que os governos destinam ao setor, estimado em torno de 4% do PIB, por muitos considerado um percentual significativo em comparação com outros países. Parece óbvio que não há controle dos gastos e, muito menos, fiscalização: ninguém sabe onde são aplicados os recursos destinados ao setor da educação e, pior, não se vê muita gente empenhada em arregaçar as mangas em prol de uma drástica reversão da triste realidade que se tem.

Cristovam Buarque propõe uma educação básica pública nacionalizada. Quer dizer, que a União volte a ter responsabilidade sobre a educação básica de modo a garantir um ensino de melhor qualidade através de um envolvimento financeiro do governo federal que vá além da distribuição de livros, de merenda e de transporte.

Explica que "transformar a educação básica em responsabilidade nacional não significa transferir para o governo federal a administração das 160 mil escolas públicas e dos cerca de 2 milhões de professores da educação básica, nem colocar as escolas brasileiras em uma camisa-de-força pedagógica". Sua proposta passa por nacionalizar a responsabilidade, com descentralização gerencial e liberdade pedagógica, acreditando ser possível combinar a atuação da União, dos governos estaduais e municipais nesse modelo.

Há outras idéias em debate com vistas a melhorar o cenário que se tem na área da educação. Muitas estão há anos em discussão. Vão e voltam à mercê das ondas de "aperfeiçoamentos" que os governos gostam de fazer nessa área com resultados, no entanto, muito limitados.

O enrosco da questão depende menos da linha pedagógica a seguir do que de efetiva vontade política para mudar, sempre tendo em mente que os avanços de hoje nesta área só darão resultados em 15 ou 20 anos.

É muito comum aqui mostrar os dados da Coréia na área da educação para comprovar a disparidade que afeta o Brasil nesse setor. De novo, os números são todos bem conhecidos. A diferença mais comentada refere-se ao percentual dos jovens que freqüentam a universidade: na Coréia, 82% dos jovens chegam ao ensino superior enquanto que no Brasil essa relação não passa de 20% com o agravante, em alguns casos, de algumas universidades brasileiras funcionarem como se fossem escolas do ensino médio de tão superficial que é o ensino.

A Coréia, sabe-se, investiu maciçamente em educação nas décadas de 60 e 70, quando o setor foi eleito prioritário pelos governos, por políticos em geral, por empresários, pela mídia e outros segmentos representativos da sociedade. Um grande esforço nacional foi feito para melhorar o ensino público básico desviando para os ensinos fundamental e médio o dinheiro das universidades que passaram a ser todas pagas, financiadas inteiramente pelo setor privado.

No país do corporativismo, leva-se anos para promover um mudança tão significativa como aquela. Mas é preciso não desanimar.