Título: O vilão foi encontrado no espelho
Autor: Carlson, Margaret
Fonte: Valor Econômico, 13/04/2006, Opinião, p. A19

Lewis "Scooter" Libby, ex-chefe de gabinete e confidente próximo do vice-presidente, olhou para dentro da goela de um grande júri e despejou palavras que poucos imaginaram que pudessem ter sido extraídas dele.

Libby disse ao grande júri, de acordo com autos do tribunal obtidos pelo "The New York Sun", que ele foi autorizado pelo presidente George W. Bush, através do vice-presidente Dick Cheney, a deixar transpirar informação confidencial para a jornalista do "New York Times", Judith Miller. Foi o que Libby fez, em 8 de julho de 2003, em meio a alguns drinques no St. Regis Hotel, a poucas quadras da Casa Branca.

À época, a administração Bush foi abalada por revelações que minavam a sua justificativa cuidadosamente arquitetada de ir à guerra contra o Iraque. O golpe mais recente havia sido desferido dois dias antes pelo ex-embaixador Joseph Wilson, que escreveu um artigo questionando a alegação da Casa Branca de que Saddam Hussein havia tentado comprar urânio com potencial uso militar em Níger. Wilson havia sido enviado a Níger pela CIA para investigar relatórios de inteligência sobre os quais a alegação estava embasada.

Para revidar, o presidente queria revelar a uma repórter, que havia provado a sua disposição de atuar como escriba da administração, o parágrafo da Avaliação de Inteligência Nacional (NIE) que dizia que Saddam "provavelmente" havia tentado obter esse tipo de combustível.

Ao não negar a bomba detonada por Libby, a Casa Branca praticamente confirmou na semana passada que a pessoa que o presidente jurou que seria punida por vazar informação confidencial era ele mesmo, e que seu desejo freqüentemente declarado de encontrar o perpetrador, em uma paródia grotesca a O.J. Simpson, havia se realizado.

Confrontado com essa revelação em um informe à imprensa na sexta-feira passada, o porta-voz de Bush, Scott McClellan, tergiversou. O presidente não vazou informação confidencial, ele "compartilhou informação"; por isso mesmo, a informação já não seria confidencial se o presidente a trouxe a público.

Em segundo lugar, disse McClellan, ao compartilhar informação destinada a refutar "acusações desvairadas" sobre armas de destruição em massa, o presidente está agindo no interesse público, ainda que cínicos possam pensar que ele estaria na verdade agindo movido por interesse político.

Se o presidente pode vazar qualquer coisa confidencial a qualquer momento por meio de uma ordem secreta, ao mesmo tempo em que promete repetidamente identificar e demitir tais vazadores, é necessário redefinir o que se entende por "tornar público" e "vazar". Bush não relatou publicamente a informação. Através de Cheney, despachou um assessor graduado para "compartilhá-la" com uma repórter, exigindo que ela mencionasse um funcionário do Congresso como sua fonte.

-------------------------------------------------------------------------------- Desde o 11 de setembro, o presidente tem agido como se tivesse poder ilimitado para fazer qualquer coisa, inclusive para interferir na ciência --------------------------------------------------------------------------------

Há um processo para tornar público informação descrita no Decreto Executivo sobre o assunto, que o presidente seguiu dez dias depois, quando divulgou a Avaliação de Inteligência Nacional completa.

Mas o que ele fez em 8 de julho foi algo bem diferente, de acordo com Jeffrey H. Smith, um ex-chefe da assessoria jurídica da CIA. "Abrir documentos ao público é um ato formal e os tribunais são claros sobre a maneira como isso é feito", diz Smith. "Em vez disso, nesse caso trechos selecionados da NIE foram divulgados a um único repórter. Isso não é tornar público, isso é um vazamento."

O presidente tem muita autoridade, porém ela não é ilimitada nem ocorre sem percalços. Por exemplo, o presidente detém a autoridade para conceder perdão a qualquer pessoa que deseje por qualquer motivo. Mas imagine se ele dissesse ao vice-presidente para este dizer a Scooter para este dizer ao carcereiro na prisão de Alderson, em West Virgínia, para libertar Martha Stewart antes da hora. Ele jamais se safaria com uma coisa dessas.

O presidente não estava alheio aos vazamentos; ele estava no comando deles. E não é apenas um vazador, é um vazador hipócrita. Ele chama vazadores de traidores de inteligência e promete processá-los. Há pelo menos uma investigação oficial em curso para encontrar e punir quem vazou a existência das escutas clandestinas sem mandado judicial de Bush.

Na sexta-feira, McClellan insistiu que o poder de Bush de tornar públicas informações confidenciais por capricho era absoluto e para isso não precisaria dizer de onde emerge essa autoridade, nem as razões para fazer tal coisa.

Tudo isso é coerente. Desde o 11 de setembro, Bush tem agido como se pudesse fazer qualquer coisa por estarmos em guerra. Qual é a extensão dos seus poderes marciais e quando eles terminam? Quando Osama for capturado? Quando o exército iraquiano "se firmar em pé"? Antes do fim do seu mandato? Ele não diz.

E quais são esses poderes? Da forma como Bush os interpreta, ele pode prender qualquer pessoa, deter e torturá-las como combatentes inimigos sem benefício de advogado ou julgamento. Ele pode camuflar o número de soldados e a quantia de dinheiro necessários no Iraque. Pode espionar qualquer pessoa sem mandado, ainda que a obtenção de um mandado seja imediata, quase automática, e ainda que possa ser requisitado retroativamente.

Na frente interna, ele também tem as mãos livres. Pode ignorar avaliações científicas consagradas (e dissolver o conselho de ciência, como fez na semana passada) e formar suas próprias avaliações intuitivas sobre aquecimento global, pesquisa de células-tronco e o sucesso da abstinência em oposição a vacinas na redução de doenças sexualmente transmissíveis. Ele pode se livrar de qualquer funcionário do governo que contar ao Congresso ou ao público o verdadeiro custo do projeto de lei de remédios prescritos ou dos seus cortes de impostos.

Se há justiça no mundo, o clipe da promessa de Bush de responsabilizar os vazadores deverá substituir, ou pelo menos acompanhará, cada reprise da fita com a colossal mentira "Não mantive relações sexuais com aquela mulher" de Bill Clinton. Bush junta-se a Richard Nixon e a O.J. Simpson e a todos os hipócritas da Galeria da Fama que tanto rebuliço fizeram em torno de buscas por toda parte dos vilões que viam em seus espelhos todas as manhãs.