Título: A iniciativa privada e a preservação
Autor: Neto, Floriano de Azevedo Marques
Fonte: Valor Econômico, 03/05/2006, Legislação & Tributos, p. E2

Antecipando-se à visita à rainha da Inglaterra, onde presenciou, de carruagem, um protesto pacífico, autorizado e amarelo do Greenpeace contra a devastação da verde Amazônia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou no dia 2 de março a lei de exploração sustentável das florestas públicas brasileiras. Deu um bom exemplo - porque o projeto de lei era do governo - de como, com alguma ousadia, pode-se obter grandes conquistas na proteção ao meio ambiente ou na implementação de políticas públicas. De quebra, vetou inconstitucionalidades, como as de submeter ao Poder Legislativo a autorização para licitar áreas de sítios e chácaras ou as de exercer prerrogativas do Poder Executivo, como a de nomear executivos operacionais para tocar o bonde dos escalões que fazem andar a máquina da República.

Até hoje a preservação dos recursos ambientais - patrimônio de todos, conforme o artigo 225 da Constituição Federal - oscilou entre dois modelos: o tombamento ambiental, pelo qual se impede o desmatamento e a exploração da área, imputando os ônus ao particular, e a desapropriação, na qual todos os ônus são assumidos pelo Estado. A eficácia de ambos tem sido, no mínimo, discutível.

A falta de fiscalização pública freqüentemente favoreceu que, apesar de tombadas ou desapropriadas, as florestas fossem gradualmente extintas ou degradadas. Se já não se põe um guarda em cada esquina das cidades, que dirá em cada nesga da mata. A gradual supressão da floresta da Tijuca no Rio de Janeiro ou nos morros de Mata Atlântica no Litoral Norte de São Paulo são tristes exemplos disso. Mas há tempo se verifica - até pelas mãos e pelo capital próprio das pessoas e empresas - que preservação de florestas não exclui alguma exploração econômica da área.

A gestão de qualquer bem público - e das florestas, em particular - não impede sua utilização pelos particulares. No mundo todo, a parceria entre poder público e iniciativa privada mostrou-se um eficiente mecanismo de preservação. Prova são os parques nacionais existentes há muito tempo no Estados Unidos, Austrália, Chile e Argentina.

-------------------------------------------------------------------------------- É tempo do direito ambiental passar a oferecer fórmulas viáveis de articular preservação e atividade econômica --------------------------------------------------------------------------------

O fato de um bem ser público não exclui sua potencial exploração econômica. O cerne do modelo está em outorgar a um particular, após uma licitação, o direito de explorar uma área de floresta em troca da obrigação de preservar, conservar e cumprir metas ambientais claramente definidas. O instrumento jurídico adequado a formalizar essa parceria é a concessão de uso de bem público para fins ambientais. A exploração econômica pode se dar pelo manejo ambiental, pela implantação de parques públicos ou pelo desenvolvimento de atividades extrativistas contratadas. É certo que esse modelo depende de instrumentos jurídicos precisos e marcos regulatórios bem definidos.

É essencial que os contratos definam claramente as obrigações do particular, as metas de preservação a serem atingidas e as atividades econômicas de exploração admitidas. Um regime rígido de sanções e um plano de seguros também devem estar contemplados. Cláusulas redigidas no rigor da lei, considerando-se que os funcionários do Estado estejam para isso bem habilitados.

Deve-se, entretanto, evitar que se adote como critério para outorga do direito o pagamento de preço público. O ônus do particular deve centrar-se na preservação. Isso não impede que, em situações específicas, sejam desenvolvidos mecanismos de compartilhamento, entre o particular e o poder público, dos excedentes econômicos que sejam gerados pela exploração racional das florestas. Porém, andará mal o governo se der prioridade à obtenção de receitas ao invés de perseguir a preservação e a recuperação ambiental.

Um último ponto se refere à regulação. A experiência brasileira demonstra que muitas vezes a ação dos governos contraria os objetivos de preservação ambiental. Ampliação de fronteiras agrícolas, assentamento de comunidades carentes, implantação de programas habitacionais ou de infra-estruturas de transportes são objetivos de políticas públicas que, por vezes, colidem com a conservação das florestas. Portanto, é importante que a gestão de florestas públicas seja objeto de uma regulação forte, autônoma e eficiente, dotada de imunidade às injunções políticas conjunturais. Sem um modelo de regulação bem concedido, a gestão de florestas não atingirá seus objetivos.

É tempo do direito ambiental deixar de ser proibitivo e primitivo e passar a oferecer fórmulas viáveis de articular desenvolvimento, preservação e atividade econômica. Limitar a preservação à edição de medidas formais, na prática, acaba em grilagem, extração ilícita de madeira ou minérios ou ocupações clandestinas. Sem cooperação com a sociedade, a capacidade do poder público é limitada, quase uma falácia. Se vingar por aí, essa boa muda tropical, num país que além da Amazônia tem tantas florestas de que ninguém fala, já se começa a exercer a soberania sem dar um tiro sequer.

Floriano de Azevedo Marques Neto é advogado, sócio do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Advocacia, doutor em direito público e do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "Regulação Estatal e Interesses Públicos"