Título: Para Bolívia, Lula terá de falar grosso mas apóia nacionalização
Autor: Leo, Sérgio
Fonte: Valor Econômico, 03/05/2006, Especial, p. A11

Associated Press O presidente da Bolívia, o esquerdista Evo Morales, durante evento ontem em Santa Cruz, um dia após o país nacionalizar o gás e ocupar empresas O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apóia a nacionalização do setor de petróleo e gás decidida pelo presidente da Bolívia, e, se reagir com um discurso forte, será só porque está em campanha eleitoral, declarou ontem, em entrevista à TV boliviana, o vice-presidente do país, Álvaro Garcia Linera. "Como está em campanha eleitoral, o presidente Lula tem de mostrar um discurso forte de defesa da empresa", disse o vice boliviano, depois de contar que Lula sempre apoiou o discurso nacionalista de Morales. "Temos de entender", comentou, em tom condescendente.

As declarações de Linera refletem uma impressão geral na Bolívia, de que a dependência do gás para abastecer indústrias e automóveis impede o governo brasileiro de qualquer reação efetiva, em curto prazo. Garcia Linera indicou, porém, que dificilmente o governo Morales aceitará reduzir os impostos que o decreto presidencial publicado ontem elevou, de pouco mais de 50% para 82%, sobre as receitas dos campos explorados pela Petrobras. "Se subíssemos para 90%, ainda teriam ganho", disse.

"A Petrobras investiu e já recuperou seus investimentos, com ganhos extraordinários", garantiu Linera. "Acabou a loteria, terão de ganhar o que ganham normalmente, em qualquer lugar do mundo", criticou. "Se não querem essas regras, sentimos muito", concluiu, fazendo um gesto de desdém, após definir o aumento de impostos sobre a Petrobras como "uma medida forte, mas justa".

O sentimento na diplomacia brasileira é o de que o governo brasileiro foi enganado por Evo Morales, que, em diversas oportunidades assegurou que respeitaria os contratos com a Petrobras (agora o governo boliviano diz que os contratos têm vícios jurídicos); e, nos últimos dias, vinha evitando contatos com os brasileiros.

"O Brasil está em uma posição negociadora fraca, porque depende do gás e não foi capaz de se adiantar aos fatos", analisa o diretor do departamento de Mestrados para o Desenvolvimento da Universidade Católica da Bolívia, Gonzalo Chávez. "Não foi por falta de informação, nem por ingenuidade política, porque o presidente Lula também vem da escola sindical, devia saber interpretar os sinais do presidente Evo Morales."

Num sinal da segurança dos bolivianos em relação à posição de força em que se encontra Morales, Gonzalo Chávez, um dos mais respeitados acadêmicos bolivianos, avalia que uma eventual saída da Petrobras da Bolívia abriria espaço para investimentos de outras companhias, entre elas a PDVSA venezuelana e companhias chinesas, que têm enviado sinais de interesse em investir no país. "É difícil prever: as companhias petroleiras querem fazer dinheiro, e são muito pragmáticas, investem até em zonas de guerra, como o Iraque, ou na Venezuela", comentou.

Esse tipo de avaliação é o que alimenta o otimismo do governo boliviano. Linera, na televisão, assegurou aos bolivianos que haveria alguma "turbulência", mas que logo os investidores se darão conta das vantagens em investir no país.

O governo brasileiro, nos últimos dias, decidiu tratar a crescente agressividade verbal das autoridades bolivianas com cautela, por acreditar que ela se tornou também uma "questão interna" - termo usado em declarações para jornais do assessor da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Às vésperas de 100 dias de governo, a oposição, à direita e à esquerda de Morales, vinha cobrando o cumprimento das promessas de campanha, a mais forte delas a nacionalização das reservas de gás e petróleo do país, cuja exploração foi concedida a empresas estrangeiras, especialmente a Petrobras, no governo de Gonzalo Sánchez de Lozada.

A exploração política dos atritos bilaterais cresceu com o conflito em torno da empresa brasileira EBX, expulsa do país por Morales sob alegação de descumprir a lei ambiental e de fronteiras - o que levou à população de Puerto Suarez, governada pela oposição, a bloquear estradas e aeroporto, em protestos contra Morales.

Uma avaliação corrente no governo é que todos os esforços de Morales (que começava a perder pontos em pesquisas de opinião) estão concentrados em ganhar maioria para a Assembléia Constituinte, a ser eleita em 2 de julho. Após essa data, ele teria mais espaço político para abrandar o discurso e as ações. A linguagem vaga de alguns termos do decreto de nacionalização alimenta esperanças de que Morales tenha deixado espaço legal para abrandar as medidas, embora seu governo indique o contrário publicamente.

É indiscutível que Morales recebeu enorme aprovação popular com o anúncio da nacionalização, junto com pesada propaganda televisiva comparando a ação ao heroísmo dos soldados que lutaram na década de 30 contra o Paraguai na Guerra do Chaco, região rica em gás e petróleo. "A história política da Bolívia é marcada por nacionalizações como forma de unificação do povo", lembra Gonzalo Chávez. "Morales provocou enorme euforia e desarticulou a oposição que já estava fragilizada."

Para o acadêmico boliviano, Morales balança entre as duas correntes que disputam a hegemonia atualmente na América Latina, uma mais pragmática, no Chile e Brasil, e outra mais populista e radicalmente nacionalista, personalizada em Hugo Chávez, da Venezuela. "O futuro vai depender da reação dos afetados", diz ele. Uma reação dura poderia fortalecer os que, na Bolívia, temem as conseqüências negativas das ações de Morales para a economia boliviana. Uma reação branda, como tomou o Brasil, poderia encorajar Morales a radicalizar suas ações de estatização e nacionalização.