Título: Bolívia abre uma crise diplomática com o Brasil
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 03/05/2006, Opinião, p. A12

Foram semanas de rechaços a intermediários do governo brasileiro e de acusações contra os "saqueadores" da pátria boliviana. Os sinais emitidos pelo governo de Evo Morales, inflamados ou não, faziam temer pelo pior. Aconteceu: os campos de petróleo e gás, mais a venda e distribuição passaram para as mãos do Estado. A renascida Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos passará a deter 51% do capital das empresas de petróleo que atuam no país, a começar pela maior delas, a Petrobras. Para insuflar vida na YPFB, Morales ampliou a taxação sobre as companhias, de 50% para 82%. A decisão unilateral criou o mais grave incidente diplomático com o Brasil na história recente e deixa pouca margem de manobra para uma eventual acomodação de posições entre os dois governos.

A atitude do governo boliviano pode ser taxada de tudo, menos de inesperada. Morales e seus ministros vinham subindo o tom de hostilidades nas últimas semanas, com uma visível mudança de atitude em relação ao diálogo com interlocutores brasileiros logo após sua posse. Até mesmo a fatia reservada para a remuneração das empresas após a nacionalização, 18%, chegou a ser ventilada pelo presidente da Bolívia em entrevista no programa "Roda Viva", na semana passada. Tanto o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, quanto o secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, fizeram inúmeros contatos, in loco ou telefônicos, com autoridades bolivianas nos últimos dias. Pode ter havido alguma surpresa - os ideólogos do governo Lula não aguardavam uma atitude tão hostil de Evo Morales, a quem apoiaram nas eleições.

Morales não deixou margem a dúvidas. Anunciou a nacionalização no dia 1º de maio, em campo de produção de gás da Petrobras (San Alberto), posteriormente ocupado por tropas do Exército. O decreto regulamentando a lei de hidrocarbonetos não menciona a forma de pagamento para as empresas que aceitarem resignar-se à entrega da maioria das ações ao governo boliviano, nem ao ressarcimento àquelas que, após 180 dias, não renegociarem seus contratos sob as condições impostas e tiverem de parar de operar no país. Nesse intervalo de tempo, a remuneração das empresas será regulada pelos termos do decreto, isto é, 82% da receita pertencerá ao Estado. Cabe agora ao Estado boliviano dizer quanto quer vender, a quem, pelo preço que resolver fixar.

Se a Petrobras não quiser aceitar a posição de mera prestadora de serviços, terá de abandonar a Bolívia. Neste caso, mesmo com contrato de fornecimento até 2019, este poderá tornar-se virtual, deixando o abastecimento do país ao sabor dos ventos políticos em uma das nações mais instáveis do continente. A curto prazo não há como tomar medidas que possam cobrir uma eventual carência do gás boliviano, que abastece o Sul e Sudeste industrializado brasileiro. Restrições no abastecimento do outro lado da fronteira forçosamente levarão a algum grau de racionamento do gás para as indústrias. Se mantido sem mudanças em relação à Petrobras, o decreto boliviano risca do mapa energético do Brasil a certeza de contar com provimento regular e seguro de gás do país vizinho.

O choque causado por Morales se deve em grande parte ao fato de que a própria Bolívia pode ser uma das maiores prejudicadas por suas atitudes. É uma jogada de alto risco. O Brasil consome cerca de 85% do gás produzido e, na região, a curto prazo, não há outro mercado da mesma importância que possa substituí-lo. O radicalismo de Morales dificulta muito uma solução, mas o fato é que a Bolívia continuará a depender do mercado brasileiro e vice-versa. Há válvulas de escape para um acordo, porém. O governo boliviano acenou com a volta da taxação a 50% como incentivo à manutenção dos investimentos pelas empresas estrangeiras. Se for real a intenção, é a única brecha que se abre para uma solução para a Petrobras. O controle majoritário do Estado é problema contornável, já que a Petrobras aceita as mesmas condições nos campos de petróleo e gás da Venezuela.

A melhor forma de tentar o acordo é fazer pressões fortes e diretas sobre a Bolívia. Afinidades ideológicas, que já embalaram as esperanças de relações profícuas entre os dois países, agora nada significam. A mediação de Hugo Chávez, que influencia Morales, pode ter alguma eficácia, mas seu custo diplomático tende a ser pesado para o Brasil. O presidente Lula conversou com Morales e acertou a retomada do diálogo, o que, nas atuais circunstâncias, não deixa de ser um avanço.