Título: Por que a inflação não cai mais rápido?
Autor: Souza, Ênio Bonafé M. de
Fonte: Valor Econômico, 03/05/2006, Opinião, p. A12

É de se admirar a resistência que a inflação brasileira tem mostrado nos últimos anos. É quase inconcebível uma economia como a brasileira conviver com uma taxa de juros real tão alta, como tem sido por anos a fio, sem se desmantelar.

Apesar de nossas taxas de crescimento estarem muito aquém do desejável, ainda temos tido algum crescimento e uma inflação que resiste bravamente em cair mais rápido. É de chamar a atenção que o último relatório de inflação do Bacen ainda mostre que em 2007 há uma pequena tendência de retomada da inflação, tanto quando se projetam juros e câmbio nos níveis atuais, quanto se utilizando os níveis de juros e câmbio previstos pelo mercado. Isso seria esperado se estivéssemos falando em derrubar o juro real a níveis muito baixos. Só que o nível de taxa real de juros projetado pelo mercado para o segundo semestre de 2006 está na faixa dos 10% ao ano! Como é possível a economia brasileira retomar taxas de inflação crescentes em 2007 com este nível de taxa de juros real? Por que a eficácia da política monetária no Brasil é tão baixa ?

A questão básica é: quanto de juros a economia agüenta? Usando o jargão técnico, qual é a taxa de juros neutra da economia brasileira? Vários economista já disseram (assim como o modelo do Bacen também está dizendo) que ela está neste patamar dos 10% ao ano. Mas como é possível? O que a economia brasileira tem de tão diferente das demais economias que permita a ela conviver com este nível de taxa de juros real e a inflação ainda suspirar em ares de ressurreição?

Os canais de transmissão da política monetária são basicamente três: o canal da taxa de câmbio, o canal do crédito e o canal dos ativos financeiros.

Começando pelo mais falado ultimamente, o canal do câmbio funciona pela valorização da moeda local dada a sua atratividade relativa vis-à-vis outras moedas. Quando a taxa de juros local sobe, há uma tendência de maior procura pela moeda local, o que valoriza a taxa de câmbio, com os efeitos deflacionários que isso tem. Aliás, este último relatório de inflação mostrou isso muito claramente.

Já o segundo canal, o do crédito, numa política monetária restritiva, funciona quando os tomadores de crédito são desestimulados ao consumo e ao investimento pelas taxas de juros mais altas. No Brasil, o volume de crédito ainda é relativamente baixo (algo como 30% do PIB), mas tem crescido ultimamente, basicamente por conta de estímulos institucionais que acabam suplantando o efeito restritivo que a política monetária gostaria de impor. Aqui ainda existe um antagonismo entre os efeitos de curto e de longo prazo da política monetária; no curto prazo, menos investimento retira pressão da demanda agregada, o que alivia a inflação, mas este investimento pode fazer falta no futuro, pois coloca o produto potencial em nível mais baixo e a inflação potencial em nível mais alto. Há que se cuidar da longevidade de uma política monetária restritiva; os melhores efeitos dos juros altos estão no curto e médio prazo. Estender demais o período de juros altos traz malefícios estruturais importantes para a economia.

-------------------------------------------------------------------------------- Grande volume de títulos pós-fixados da dívida pública federal é uma armadilha para a autoridade monetária --------------------------------------------------------------------------------

Mas o terceiro canal, o dos ativos financeiros, é que traz meu ponto. O estoque de ativos financeiros da economia é fonte de riqueza e de renda aos seus detentores. A riqueza é parte da renda passada transformada em poupança financeira. A renda, por sua vez, é fruto dos juros reais recebidos pelos detentores destes ativos financeiros. Quando a autoridade monetária restringe ou afrouxa a política monetária, isto tem efeito imediato sobre os detentores destes ativos, principalmente pelo lado do efeito riqueza.

Se a taxa de juros sobe, o valor presente dos títulos prefixados cai, destruindo riqueza dos detentores de ativos. Isto tem o efeito de desestimular o consumo e o investimento, tirando pressão da inflação. Este efeito está especialmente presente quando os títulos disponíveis no mercado são prefixados e de longo prazo - como é o caso da maioria das economias desenvolvidas. Quando o juro americano sobe 25 pontos base, a destruição de riqueza dos detentores de títulos do governo americano é formidável. No caso brasileiro, o grosso do volume de títulos de renda fixa no mercado é de títulos públicos do governo federal, mas metade deste montante é de títulos pós-fixados, cujo valor nominal sofre correção diária pelos juros overnight.

Neste caso, o efeito riqueza funciona ao contrário, ou seja, os detentores de títulos pós-fixados ficam mais ricos com uma elevação da taxa de juros overnight.

A armadilha que temos atualmente é o grande volume de LFTs no mercado - aproximadamente um quarto do PIB - que são pós-fixadas e trazem um efeito riqueza positivo, estimulando a inflação ao invés de refreá-la.

Um agravante: como os juros reais são muito altos, começa a atuar o efeito renda real, ou seja, os agentes econômicos entendem que além de ficarem mais ricos por causa da valorização dos títulos, como os títulos incorporaram um ganho real definitivo (as LFTs são perdem valor se os juros voltarem a subir), parte desse ganho pode ser transformado em consumo, sem grandes prejuízos. Os agentes entendem que este ganho extraordinário é renda corrente e não somente riqueza estocada.

Este mecanismo é muito evidente quando falamos de pessoas físicas, mas também vale para as empresas, que têm boa parte da poupança financeira do mercado e giram seu caixa no mercado financeiro, normalmente aplicados em fundos de curto prazo. Estes fundos são os grandes detentores das LFTs, que trazem o efeito que descrevemos acima.

Em suma, dos três canais de transmissão da política monetária, só um está atuando de forma satisfatória: o do câmbio. Nos outros dois, a autoridade monetária tem sido "sabotada" pelos novos mecanismos de criação de crédito no país e está numa armadilha imposta pelo grande volume de títulos pós-fixados que compõem a dívida pública federal. Deste ponto de vista, fica mais fácil entender por que a eficácia da política monetária no Brasil é tão baixa.

Ênio Bonafé M. de Souza é economista e ex-professor da FGV-SP. E-mail: eniobms@uol.com.br