Título: Um difícil acerto com o passado
Autor: Nassif, Maria Inês
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2006, Política, p. A6

O 13º Encontro Nacional do PT, ocorrido neste fim de semana, foi o primeiro grande evento partidário após os escândalos que ceifaram cabeças petistas no governo, no Congresso e no próprio partido. As decisões da reunião expõem uma agremiação ainda mergulhada em profunda crise. Elas parecem não trazer nenhuma lógica, embora tenham.

O PT se submeteu às conveniências de governo e da reeleição quando deu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva carta branca para fazer coligações. Ao mesmo tempo, tirou do baú o discurso de esquerda "transformadora", jogando a recondução de Lula como um objetivo tático, parte de uma estratégia socialista. Num outro lance, que quase neutralizou o anterior, a direção diferenciou o que seria um programa partidário de um programa eleitoral - o da candidatura Lula. Atenuou, de antemão, os efeitos eleitorais sobre a reeleição de Lula de uma guinada sua à esquerda.

Num dos documentos aprovados, o Encontro soprepôs ao reconhecimento das conquistas sociais do governo Lula críticas claras ao modelo de gestão macro-econômica, em especial à autonomia operacional do Banco Central. Foi o mesmo público que aplaudiu a referência feita por Lula ao ex-ministro Antonio Palocci, artífice da política econômica conservadora do governo petista. "Ele [Palocci] foi alvo das críticas de muita gente, mas é um dos responsáveis pelo sucesso do governo", disse Lula, sob aplausos.

-------------------------------------------------------------------------------- A máquina do partido tem lógica e ideologia --------------------------------------------------------------------------------

Não se pode negar também que o partido foi duro com os acusados de envolvimento com os financiamentos ilegais de campanha e corrupção e com a direção partidária que abriu espaço para isso: no texto-base, defende a investigação dos acusados, com amplo direito de defesa, mas "punição rigorosa" para aqueles cuja falta for comprovada; numa moção, propõe "autocrítica" e aponta como uma das "práticas políticas inaceitáveis" a "centralização de decisões por alguns dirigentes, sem autorização de nossas instâncias". O mesmo público aplaudiu o ex-presidente do partido, José Dirceu, quando Lula destacou sua presença no evento.

Não se trata apenas de uma confusão ideológica, ou divisão partidária - aliás, houve um esforço inédito de consenso entre as facções. O problema é que o PT alimentou uma máquina que o engoliu, e os que ficaram não sabem como se faz para colocar essa engrenagem a serviço da sua reconstrução. Antes do terremoto que abalou suas certezas, a unidade era obtida pelo poder de coação da maioria alojada na máquina partidária, o Campo Majoritário. Depois disso, a máquina deixou de ser movida por uma facção hegemônica: mesmo vitorioso no PED de setembro passado, o Campo Majoritário não consegue mais decidir sozinho para onde vai o PT. Seu poder de cooptação foi sensivelmente reduzido; o de coação, neutralizado.

O domínio da máquina não é um fim em si, nem apenas define privilégios ou profissionaliza a ação política. A máquina partidária não é neutra: no caso do PT, ela impôs posições políticas que, se foram a base da vitória de Lula em 2002, alijaram os grupos que se opunham a ele. O Campo levou o partido a posições moderadas. O Encontro foi uma tentativa de definir uma nova hegemonia - ao menos ideológica -, mas é discutível se conseguiu essa façanha.

Existem razões para a guinada, contudo, que transcendem as questões de foro interno. O fato é que a ofensiva dos partidos de oposição deixou pouco espaço para o PT no centro ideológico. O partido está sendo movido para a esquerda pelas forças externas, mais do que pela famosa "correlação de forças" interna. E é um retorno repleto de contradições. Para voltar à esquerda, tem que estabelecer uma diferença entre o partido e o governo - aliás, uma moção do encontro diz que "trata-se de prosseguir neste caminho (da autocrítica), revalorizando a luta social como dimensão fundamental de nossa estratégia; reafirmando a autonomia do partido frente ao governo e às instituições do Estado; acentuando a luta ideológica e política das classes trabalhadoras contra a direita e suas práticas". Ao mesmo tempo, o caminho da esquerda é o único que o partido tem para capitalizar apoio e voto dos movimentos organizados, enquanto Lula capitaliza apoio e voto das camadas mais pobres, porém desorganizadas. Há uma distância entre Lula e o partido também nisso: para chegarem aos mesmos estratos da população, ambos fazem caminhos diferentes.

O retorno à esquerda também obriga um acerto de contas com o passado. A máquina afastou lideranças populares. Foram expoentes dessa esquerda que saíram quase vaticinando o futuro.

No 10º Encontro Nacional do partido, em 1995, César Benjamin foi expelido porque tentou colocar em discussão sobre o financiamento das campanhas do partido. Nove anos depois, Benjamin escreveria que o episódio não foi nada perto do que veio depois. "Em 1995, [o PT] era um grupo de freiras, perto do que é hoje". Na carta que escreveu, já de saída, era na máquina que mirava: "Ao eleger Dirceu, a maioria escolheu o quadro mais capacitado para gerenciar o condomínio de ambições que perpassa o partido", diz. E descreve a "lógica" das máquinas eleitorais à qual o governo se rendeu: "Grandes ambições articulam pequenas ambições, grandes chefes têm sob si chefes menores, empregos mais altos geram empregos para quem está embaixo". Em dezembro de 2003, em artigo que selou o seu afastamento do partido, Francisco de Oliveira fez um diagnóstico de um PT já no governo: "Há transformações estruturais na posição de classe de um vasto setor que domina o PT, que indicam uma real mudança do caráter do partido". No primeiro dia deste ano, Francisco Whitaker, da Comissão de Justiça e Paz da CNBB, divulgou documento justificando sua decisão de sair do PT: "As correntes internas lutam para ter o poder dentro do partido. E aquela que vence essa disputa se apodera da máquina burocrática e começa a concentrar poder. Fica cada vez mais difícil desalojá-la, com a luta pela continuidade reformada pelos interesses pessoais dos burocratas que a compõem (...). Essa distorção, que deu cada vez mais autonomia e poder à direção partidária, separando-a das bases, em minha opinião foi a que moldou as demais."