Título: A crise nacional do gás natural
Autor: Pires, Adriano e Schechtman, Rafael
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2006, Opinião, p. A12

Com muito simbolismo, o presidente Evo Morales escolheu o Dia do Trabalho para promulgar o decreto que nacionaliza todas as operações da indústria de hidrocarbonetos da Bolívia. Anunciado nas instalações do campo produtor de gás de San Alberto, operado pela Petrobras, o decreto foi além do processo de nacionalização e promoveu o confisco e expropriação dos ativos das empresas que exploram e produzem hidrocarbonetos na Bolívia.

Para continuarem a operar no país, as empresas devem acatar imediatamente as disposições do decreto e, após um período de transição de 180 dias, assinar novos contratos que atendam as novas condições legais. As empresas tornaram-se meras operadoras e serão remuneradas pela prestação de serviços. Como já era antes do decreto, o Estado boliviano fará jus a 32% do valor da produção de cada campo, a título de imposto direto, e a 18% de royalties. Mas, a partir de agora, as empresas recolherão à empresa estatal boliviana (YPFB) uma participação adicional sobre o valor da produção dos campos. Durante o período de transição, a participação será de 32% para campos que produziram em 2005, em média, mais de 100 milhões de pés cúbicos por dia, e nula para os demais. A medida penaliza os grandes campos, em especial os da Petrobras e da Repsol, que serão remuneradas com apenas 18% do valor da produção, para remunerar seus custos de operação, depreciação dos investimentos e utilidades, enquanto os demais mantêm, por enquanto, a remuneração de 50%.

De acordo com o decreto, o Ministério de Hidrocarburos y Energia estabelecerá a retribuição ou participação definitiva correspondentes às empresas que celebrarem os novos contratos, após realizar auditorias em cada campo para determinar os investimentos realizados, amortizações, custos de operação e a rentabilidade obtida.

A atitude do presidente Morales não surpreendeu pois, desde antes de sua eleição, deixou claro que nacionalizaria a indústria de hidrocarbonetos do país. O governo brasileiro e a Petrobras, porém, acreditavam que a estatal teria um tratamento privilegiado, em face da sintonia ideológica entre os presidentes do dois países. O que se viu até agora, entretanto, é que a Petrobras está sendo tratada como as demais empresas e taxada de imperialista pela população boliviana.

A decisão da Bolívia tem pesos bastante diferentes sobre a Petrobras e o Brasil. Para a Petrobras - considerando a pior das hipóteses, a da saída da empresa da Bolívia -, a perda de U$ 1 bilhão investidos no país representa pouco mais que 1% dos seus ativos consolidados em 2005. Portanto, sob o ponto de vista empresarial, a retirada da Petrobras não afeta o balanço da empresa ou o desempenho de suas ações.

-------------------------------------------------------------------------------- Lula encerra sua atual gestão, por falta de planejamento, deixando o país na ante-sala do apagão do gás natural --------------------------------------------------------------------------------

Mas se não é tão essencial para os negócios da Petrobras, a Bolívia é vital para o Brasil. O consumo de gás no Brasil tem crescido a uma taxa anual de 15% e já representava 9% da matriz energética nacional em 2004. Em 2005, 51% do gás consumido foi importado da Bolívia. Em São Paulo, onde o produto boliviano representou 75% do consumo de gás em 2005, a importância do combustível na matriz energética industrial atingiu 12% em 2004. Nos Estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Santa Catarina, o gás boliviano corresponde a 100% do consumo de gás e, no Rio Grande do Sul, 70%. Nos curto e médio prazos, não existe perspectiva de aumento da oferta doméstica em volume suficiente para diminuir a nossa dependência da Bolívia.

A crise da Bolívia evidencia a falta de planejamento do governo no setor de gás natural. Desde que tomou posse, em janeiro de 2003, o governo vem promovendo uma política de massificação do uso de gás natural. Para isso, congelou os preços do gás e o mercado respondeu crescendo 15% ao ano. Se houvesse algum planejamento, o governo deveria ter incentivado o aumento da oferta interna e diversificado as importações. Até recentemente, o governo relegou ao último plano de sua agenda a elaboração de lei uma específica para a indústria do gás natural, necessária para dar segurança e atrair investidores privados que, juntos com a Petrobras, poderiam acelerar o aumento da oferta doméstica. De fato, o governo agiu em sentido inverso, pois, quando tal lei foi proposta no Senado pelo senador Rodolpho Tourinho, através do PLS nº 226/05, o governo não só ignorou-a, mas preferiu encaminhar um projeto alternativo à Câmara dos Deputados, dividindo as discussões e tumultuando o trâmite da proposta no Senado.

A situação atual na Bolívia evidencia a premência de um marco regulatório que permita direcionar ao Brasil os investimentos que sairão da Bolívia. Outras medidas a serem empreendidas incluem a redução dos royalties cobrados da produção nacional de gás natural e a implantação de soluções para o aproveitamento do gás queimado nas plataformas da Bacia de Campos, cujo volume representou 17% da produção em 2005.

Há muito tempo o país já deveria ter se preocupado com a diversificação de suas fontes de suprimento de gás. Ao invés de expandir as importações da Bolívia para possibilitar o suprimento para o Nordeste, através da construção do gasoduto Sudeste-Nordeste (Gasene), a Petrobras, em parceria com outras empresas interessadas, deveria construir plantas de regaseificação de gás natural liquefeito (GNL), especialmente no Nordeste, onde há maior escassez de gás do que nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

O presidente Lula, que tanto responsabiliza a falta de planejamento de seu predecessor pela crise no suprimento de energia elétrica de 2001, comete o mesmo erro e encerra sua atual gestão deixando o país na ante-sala do apagão do gás natural.

Adriano Pires e Rafael Schechtman são diretores do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE).