Título: Morales impõe teste a Lula
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2006, Opinião, p. A13

O episódio da nacionalização das reservas de hidrocarbonetos bolivianas a ninguém deveria ter surpreendido. O primeiro-ministro da Espanha, José Luís Rodríguez Zapatero, foi dos primeiros a reconhecer que o tema esteve claramente presente nos discursos de campanha de Evo Morales, na condição de candidato à Presidência da Bolívia. A Espanha, como se sabe, tem interesses na área do gás e do petróleo daquele país, através da Repsol. Encabeça, com a Petrobras, a lista dos maiores investidores estrangeiros no setor .

Fica claro que Morales articulou toda a presepada no dia 1º de maio, aproveitando o simbolismo da data, para criar um fato consumado, na medida em que pretende a revisão de todos os contratos de exploração e comercialização de gás e petróleo celebrados com empresas estrangeiras pelos governos que o antecederam. Impôs por decreto, unilateralmente, o prazo de 180 dias para que os investidores de fora cheguem a um acordo que certamente envolverá não apenas ampliação dos royalties e das taxas cobradas sobre os produtos, mas também prazos, preços e outras condições contratuais.

Fica pendente, como uma espécie de espada de Dâmocles a pesar sobre as empresas estrangeiras, a ameaça de expropriação - essa sim causa para imensa preocupação pelo transtorno que traria ao patrimônio e rentabilidade da Petrobras, da Repsol e demais companhias que se encontram na mesma situação -, além do não ressarcimento de compromissos financeiros devidos pelo governo boliviano e outras pendências que só serão conhecidas nos próximos meses, depois do levantamento que as partes certamente se dedicarão a fazer.

Quem tem acompanhado, mesmo à distância, a movimentação popular na Bolívia contra a ação das chamadas "petroleras" sabe que a questão se arrasta há pelo menos dois anos, quando um grande referendum realizado em julho de 2004 obteve de 92% dos votantes bolivianos o "sim" à renacionalização da exploração do gás e do petróleo. No final de novembro daquele ano, a Câmara dos Deputados deu início à aprovação em La Paz dos primeiros artigos da nova Lei dos Hidrocarbonetos, entre os quais o que tratava da conversão dos contratos vigentes das empresas petrolíferas estrangeiras, além da propriedade dos campos de petróleo e gás.

Desde então, o tema se mantém aceso na sociedade boliviana. Morales, homem do campo e não da elite, teria feito um discurso incongruente se fosse contrário à nacionalização dos setores de gás e petróleo na Bolívia.

No Brasil, as reações têm sido as mais desencontradas possíveis. Falou-se, estranhamente, que o Brasil foi apanhado de "calças na mão" com a decisão anunciada na segunda-feira. Só se o país não tem um Itamaraty atuante nas suas funções mínimas de acompanhar o que se passa na política e na economia dos países à sua volta, para não ir muito longe.

-------------------------------------------------------------------------------- O caso do gás boliviano tem contornos que o habilitam a ascender aos palanques e a ganhar relevância no debate eleitoral brasileiro --------------------------------------------------------------------------------

A nota divulgada pelo Palácio do Planalto na terça-feira deixou a desejar. Não teceu nenhuma crítica à atitude "inesperada" do presidente Morales ou condenou a iniciativa da quebra de contrato unilateral. Nem mesmo, o que é pior, expressou algum tipo de apoio à Petrobras, que atua na Bolívia de comum acordo com as autoridades daquele país, sem que sua atividade por lá tenha resultado de algum ato de invasão do território boliviano. A Petrobras, assim como a Repsol, a Total e outras empresas estrangeiras não estavam camufladas na Bolívia.

A nota do governo esqueceu que a Petrobras também é um problema de soberania nacional, na medida em que a empresa pertence à União, ou seja ao país, e não ao presidente da República ou a algum ministro brasileiro. Sendo assim, não pode o governo dar tratamento ao caso como se estivesse abrindo mão de zelar pelos interesses do país para proteger os interesses do país vizinho.

Com toda a esquerda, populista ou não, de vários cantos do mundo, e mesmo do Brasil, manifestando apoio a Morales, pode-se antever as dificuldades que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá pela frente, nestes 180 dias que lhe restam para conduzir o processo de negociações com a Bolívia, segundo o prazo definido pelo presidente Morales. Coincidentemente, a data fatal vai cair exatamente em 1º de outubro, dia em que os brasileiros estarão nas ruas, cumprindo a missão cívica de votar no primeiro turno das eleições majoritárias.

Sem que ninguém pudesse sequer imaginar - e não passa pela cabeça de ninguém que Evo Morales tenha feito coincidir as datas de forma propositada - o caso do gás boliviano tem contornos que o habilitam a ascender aos palanques brasileiros e a ganhar relevância no debate eleitoral. Para Lula, para a Petrobras da auto-suficiência e principalmente para o Itamaraty, um grande teste se impõe pela frente.

Quanto à Bolívia, por mais que Morales possa se sentir no direito de rever contratos que julgue lesivos aos interesses de seu povo, a margem de manobra nas negociações com a Petrobras e outras empresas não é muito grande. Por um simples motivo: o gás que representa boa parte da receita fiscal e comercial do país tem limitações de transporte que lhe são inerentes, além de não ser uma commodity negociada no mercado internacional.

Para continuar a garantir receita da comercialização do gás, os bolivianos dependem do gasoduto para distribuir o produto e de negociações bilaterais (entre fornecedor e comprador) para garantir mercado. O preço, neste caso, não é determinado apenas por quem vende, ainda que o fornecedor possa ser importante para o comprador.

A Bolívia, como se sabe, é um país abundante em recursos naturais, com cerca de 12 hectares por habitante de terra plenamente utilizável na produção agrícola, além de deter importantes reservas de ouro, prata, zinco, gás e petróleo. Mas é considerado o país mais pobre da América do Sul, com renda per capita pouco acima dos US$ 100 por mês.

Não se vai entrar aqui nos motivos seculares que fizeram a Bolívia ser o que é hoje, um país de economia basicamente agrícola e extrativa mineral, onde quase 40% da mão-de-obra se dedica à subsistência em pequenas propriedades no campo e outros cerca de 25% trabalham na informalidade urbana. Nenhum país deve-se orgulhar disso, mas não será rompendo contratos e impondo condições a parceiros comerciais e investidores que a Bolívia conseguirá sair de onde está.