Título: "Diálogo do BNDES com equipe econômica é agora mais franco"
Autor: Góes, Francisco e Santos, Chico
Fonte: Valor Econômico, 04/05/2006, Especial, p. A14

O novo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Demian Fiocca, define a melhoria das relações do banco com a equipe econômica do governo a partir da ida para o comando do Ministério da Fazenda do seu ex-presidente Guido Mantega com uma frase: "Há um diálogo mais franco." Isso porque há mais de três anos o BNDES vinha encontrando no ex-secretário do Tesouro Joaquim Levy uma barreira intransponível a pleitos como o de aumento do capital do banco ou a ampliação de financiamentos para o setor público. Levy foi substituído por Carlos Kawall, saído diretamente do comando da área financeira do banco.

Fiocca, que aos 37 anos é o mais novo executivo a chegar à presidência do banco, que movimenta este ano orçamento superior a R$ 50 bilhões, ressalvou que o fato de Kawall ter sido diretor do BNDES não fará com que ele seja menos zeloso no seu novo papel de gestor da dívida pública, mas disse que o ambiente de diálogo que se criou a partir da mudança já facilitou a liberação de uma linha de R$ 300 milhões para financiar a compra de equipamentos de manutenção de estradas pelas prefeituras.

Fiocca defendeu as metas fiscais do governo, afirmando que elas deram ao país "o melhor nível de credibilidade junto aos mercados da história" e disse que uma eventual redução no ritmo de queda da taxa Selic, que baliza os juros básicos da economia em geral, não impede que a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), piso dos empréstimos do BNDES, continue caindo. "As duas coisas são desvinculadas, sim, até por construção institucional."

O presidente do BNDES foi entrevistado pelo Valor na sexta-feira. Ontem, por correio eletrônico, ele respondeu a uma questão adicional sobre as implicações para o banco da crise Brasil-Bolívia. Fiocca disse que o banco não tem no momento nenhum financiamento a cliente localizado na Bolívia, mas defendeu a continuidade da política de integração sul-americana, da qual o BNDES é um dos principais instrumentos.

Valor: Qual deve ser o papel do BNDES na sua visão?

Demian Fiocca: O que vejo como meta para ação da diretoria atual, e que coincide com a da anterior, é a combinação de busca de excelência técnica com uma postura pró-ativa ao fomentar o desenvolvimento. Essa é uma diretriz um pouco diferente daquela postura que diz que o importante é desenvolver e que essa história de cuidar do risco é conservadora. É também diferente da postura que repete de maneira simplista a idéia de que existe oposição entre Estado e mercado, setor público e setor privado. Procuro usar uma definição mais clássica, com perspectiva social-democrática, mas sem abrir mão da excelência técnica. E acho que essa combinação se encontra em um momento feliz no governo. Temos no Ministério da Fazenda uma equipe responsável, mas também progressista, e no BNDES, uma diretoria progressista, mas também responsável. Há que se destacar ainda que o arranjo institucional do BNDES com o sistema FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador, principal fonte de dinheiro novo para o banco) é a solução para o problema que muitos países encontram no financiamento à infra-estrutura. Na indústria, sobretudo a exportadora, os financiamentos em moeda estrangeira são menos problemáticos. Para a infra-estrutura, isso é um problema que emerge da realidade da infra-estrutura (que fatura, geralmente, só em moeda nacional). Outra área na qual o BNDES atua com sucesso é a de governança das empresas. O banco tem tido sucesso em entrar com instrumentos de capital em várias delas, cobrar avanços de governança e levar empresas que eram pequenas e com capital fechado a entrar em bolsa.

Valor: Quais o sr. destacaria nessa área de governança?

Fiocca: Tivemos o caso da América Latina Logística (ALL) e outros como a Totvs (antiga Microsiga) e a Natura.

Valor: Mas não fica claro qual o papel do BNDES na melhoria da governança da Telemar, por exemplo.

Fiocca: O papel que eu mencionei está mais vinculado com empresas menores que a gente ajuda a crescer e a irem para o mercado e não a empresas que são muito líquidas, as mais negociadas do mercado, com gestão profissional. Na Telemar, a participação do banco buscou o apoio de capital na privatização.

Valor: Estrategicamente, o caminho do BNDES seria sair desse tipo de participação?

Fiocca: Como o grupo de gestores da empresa anunciou a possibilidade de fazer estratégia de pulverização, eu não me sinto à vontade de comentar nada, mesmo que genericamente, porque pode ser interpretado como uma indicação específica sobre o que está no mercado.

Valor: A Telemar é a segunda empresa a oficializar operação de pulverização. A primeira foi a Embraer. O banco tem estudado essas operações e o efeito que elas podem ter sobre o mercado de capitais?

Fiocca: Vou falar em tese, sem entrar no mérito de operação específica, na linha de estímulo ao aumento da governança. A perspectiva de empresa pública, com ações pulverizadas, gestão profissional, ações ordinárias, é favorável. Vemos com bons olhos avanços nesse sentido.

Valor: Que outras prioridades que essa diretoria terá no mercado de capitais?

Fiocca: Esperamos concluir a aprovação de fundos de investimento selecionados dentro da nova política de prioridades. Identificamos que para empresas menores, as empresas emergentes, ainda que faça sentido entrar em algumas operações, em especial nas áreas de inovação, software, fármacos, faz sentido também trabalhar com abordagem de carteira. Porque são empresas que têm em seus ativos e seu capital, muitas vezes, ativos intangíveis. Ou seja, são empresas frágeis em garantias reais mas que têm, por outro, potencial de crescimento maior que empresas já consolidadas. Nesse sentido, o mais adequado é o equity (capital).

Valor: Desde que este governo assumiu, e até mesmo antes do governo Luiz Inácio Lula da Silva, discute-se a possibilidade de o banco financiar mais maciçamente a infra-estrutura para o setor público.

Fiocca: Não é o nosso foco. No investimento público a principal questão não é capacidade de financiamento. É o espaço fiscal. O que limita é a necessidade de preservar uma situação fiscal sólida, continuar a trajetória de redução da dívida pública.

Valor: Mas muitos consideram que seria possível flexibilizar, modificando limites aos quais o banco está submetido. Isso é possível?

Fiocca: Os limites que existem para financiamento ao setor público são limites que existem para o setor financeiro como um todo, indistintamente. Existem também limites prudenciais, que são limites de exposição ao risco setor público por entidade, com base no capital de cada banco, que no caso do BNDES não é efetivo, ou seja, a gente está abaixo desse limite. Tudo isso compõe um arcabouço mais amplo, que remete ao resultado fiscal. Posto dessa maneira mais simplificada, perguntaria: o superávit primário de 4,25%, que é a meta do governo, é excessivamente alto? Eu não diria. Diria que ele é, digamos, objetivamente alto, se comparado ao que outros países fazem, mas diria também que ele é adequado. Está contribuindo para trazer o retorno que dele se espera. Ele é um custo, porque o Estado arrecada e não devolve em serviços, mas é parte de um conjunto de fundamentos que colocou o Brasil em uma posição muito boa. Temos, talvez, o melhor nível de credibilidade junto aos mercados da história. E uma trajetória de crescimento que não enfrenta nenhum obstáculo maior. Tivemos em 2005 uma desaceleração, que considero de natureza conjuntural.

Valor: E o aumento do capital do banco, como vai?

Fiocca: Essa discussão prossegue...

-------------------------------------------------------------------------------- Eu diria que a meta de 4,25% para o superávit primário não é excessivamente alta e sim adequada" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: Com a casa agora toda afinada (BNDES, Ministério da Fazenda e Secretaria do Tesouro) não ficou mais fácil resolver?

Fiocca: Eu diria o seguinte sobre isso da afinação: por um lado, as pessoas que são responsáveis e técnicas, como são os quadros da área econômica do governo, cada uma tem que zelar pelas funções do posto em que está. Então, é claro que o Carlos Kawall, que era nosso diretor-financeiro e foi alçado a secretário do Tesouro Nacional, conhece, sim, a realidade do BNDES. Mas ele tem a responsabilidade pela boa gestão da dívida pública, por tudo aquilo que são as atribuições do governo. O que eu acho que está bom agora, que está favorável, é que há o diálogo mais franco. As discussões técnicas são feitas de modo mais aberto.

Valor: Mas não quer dizer que se resolvam os problemas?

Fiocca: Ou, pelo menos, não quer dizer que eles vão agora ser resolvidos sem chegar a algo que seja consistente e razoável. Não é porque foi alguém do BNDES para o Tesouro que o Tesouro vai fazer algo ignorando o lado fiscal. É mais franco porque de fato existem "trade offs" (barganhas). Quando se pergunta: por que o Estado não investe mais em infra-estrutura? É claro que é bom investir em infra-estrutura. Mas o outro (secretário do Tesouro) argumenta: "Eu tenho que fechar as contas." Se a pergunta for feita ao ministro dos Transportes ele vai dizer que quer mais investimento. Se for ao ministro da Fazenda ele dirá: "Eu estou fazendo o possível." Nenhum dos dois está errado. De fato, é um "trade off". O que eu acho que melhorou é que a gente tem um canal franco de discussão.

Valor: Mas a possibilidade de o banco emprestar mais ao setor público continua amarrada...

Fiocca: Eu vou dar um exemplo de como eu entendo isso. Fazer uma coisa ignorando o impacto sobre a outra, ou seja, liberar o máximo de investimentos públicos, pelos seus méritos, ignorando a parte fiscal, não dá para fazer. Agora, dá para ir trabalhando composições de diferentes instrumentos, de diferentes políticas, de tal modo a que, cumprindo-se a meta fiscal de 4,25% (do PIB), procuremos eleger prioridades. O que foi feito na semana passada nessa linha? Foi liberado financiamento às prefeituras para a compra de equipamentos de manutenção de estradas. Eu posso usar esse caso para dar exemplo do que falei sobre um diálogo mais franco: nós tínhamos uma discussão na qual o BNDES e o Ministério das Cidades tinham proposto um valor maior. Saíram R$ 300 milhões. Na gestão do antigo secretário do Tesouro Nacional (Joaquim Levy) havia uma tendência a não liberar ou, liberando, colocar várias exigências que, no final, fariam com que a linha não andasse. Então, os dois lados, o que via o mérito de melhorar as estradas e o que via o mérito de fazer uma gestão pública responsável, não chegavam ao melhor ponto de equilíbrio. Como fechamos isso? Fizemos uma discussão aberta. Eu disse para o Kavall: "Olha, esse monte de exigências aqui vai travar a linha. Anunciar uma linha grande e cheia de obstáculos não é boa gestão pública. Quanto é possível liberar sem todos esses obstáculos? Não pode ser R$ 600 milhões (a reivindicação do BNDES)? Pode ser R$ 300 milhões? Então, que sejam R$ 300 milhões, mas sem todas essas dificuldades." E fechamos. Isso é diálogo franco.

Valor: Há, realmente, uma nova disposição do governo para resolver o problema Varig?

Fiocca: A abordagem do BNDES será dentro da prudência bancária, procurando, dados os limites e parâmetros, contribuir para uma solução o mais ordenada possível. Como parte da equipe econômica, ele procura soluções que evitem maior desemprego, desorganização dos setores etc. Se uma fábrica que está indo mal puder ser vendida a outro que pegue aquela operação antes dela fechar, certamente vale mais do que passar o cadeado, demitir todo mundo e depois vender as máquinas. Especificamente no caso Varig, eu mencionei essa possibilidade de financiar um comprador como um exemplo, até porque foi o que fizemos na VarigLog. Na época já falaram que era o começo da colocação de dinheiro público para salvar a empresa o que não era, e não é, verdade. Fizemos com a fiança da TAP, que é praticamente a do governo português, e já recebemos.

Valor: Mas tanto no caso da VarigLog como da VEM eram empresas sadias, o que não é o caso da Varig. Além disso, no caso da aérea, os valores são muito maiores.

Fiocca: A postura do governo sempre foi a de que estamos sensíveis ao problema e que, podendo contribuir para sua solução, vamos contribuir. Mas não podemos, simplesmente, trazer o ônus de uma empresa que está em dificuldade para o conjunto da população, pagando suas dívidas ou o equivalente. Quando o governo diz que não vai colocar dinheiro público lá, está dizendo uma coisa específica. Quando se olha só essa frase, parece que o governo não está fazendo seus melhores esforços. Acho que não. Em várias esferas, o governo está procurando contribuir para resolver a situação. Então, a frase que diz "vamos contribuir" não nega a outra dizendo que não vamos simplesmente colocar dinheiro. São dois aspectos, só que realçados em momentos diferentes.

Valor: Em um possível formato no qual a empresa seria desmembrada, sendo criada uma Varig nova, para o mercado doméstico, enquanto a outra, ficaria com a parte internacional e os passivos, o BNDES poderia financiar o comprador dessa Varig nova?

Fiocca: Esse formato que você descreveu pode se encaixar naquilo que vimos dizendo: se houver um investidor consistente, que se enquadre na análise de crédito do BNDES, a gente pode financiá-lo para que faça aportes para a Varig.

Valor: A sinalização da ata do Copom de que haverá um freio na queda da Selic pode significar também alguma dificuldade para que a TJLP prossiga caindo, ou pode-se desvincular as duas coisas?

Fiocca: As duas coisas são desvinculadas, sim, até por construção institucional. Ambas são instrumentos de política econômica, mas têm missões diferentes. A TJLP tem por missão oferecer ao setor produtivo nacional condições de financiamento para investimentos e exportações com taxas similares às que ocorrem no mundo, ajustadas pelas especificidades do Brasil. O que é que dá condições para isso: é o risco Brasil. Qual o critério que o Conselho Monetário Nacional (CMN) deve seguir ao definir a TJLP: deve seguir o critério de buscar uma taxa de longo prazo que corresponda à meta de inflação mais o risco-país. Qual a construção institucional que os diretores do BC devem buscar na construção da Selic? O mandato institucional que eles têm é para fazer a gestão de curto prazo da política monetária, de tal modo a conduzir diversas variáveis econômicas influenciadas por essa gestão, entre as quais as principais são a demanda agregada e a taxa de câmbio.

Valor: Para um banco de desenvolvimento é desejável que a Selic caia mais vagarosamente?

Fiocca: Eu prefiro não comentar decisão do BC. Mas se a pergunta for vista de um ponto mais genérico, eu digo que não vejo no conjunto das políticas econômicas que esteja surgindo um novo cenário mais pessimista.

Valor: Qual é o limite de crescimento da economia brasileira?

Fiocca: O país pode crescer de forma consistente 4% a 5% ao ano a partir de 2006.

Valor: No primeiro trimestre deste ano, os desembolsos do banco para projetos de investimento totalizaram R$ 6,7 bilhões com queda de 28% em relação a igual período de 2005. Mesmo assim a diretoria do BNDES projeta crescimento de até 5% para o PIB. Não há contradição entre os números?

Fiocca: Nós discutimos o que os dados indicavam. E concluímos que os dados indicam pouco, são um ponto fora da curva. Poderia ser um sinal adicional se fosse consistente com outras coisas. Todo o resto indica que estamos acelerando.

Valor: Valor: Qual o impacto da situação da Bolívia no apoio do BNDES a projetos de integração na América do Sul e em especial naquele país ?

Fiocca: A atuação do BNDES no que se refere a projetos na América do Sul limita-se ao financiamento de exportações brasileiras de bens e serviços e se dá mediante a constituição de garantias adequadas. Não há atualmente na carteira do banco financiamentos contratados com importadores localizados na Bolívia. Ainda que decisões soberanas de alguns países possam criar ao Brasil situações que impliquem negociações difíceis, acho correta a postura da diplomacia brasileira de buscar maior aproximação com os países da América do Sul. No caso específico da Bolívia, creio que o Brasil está em melhor posição para o diálogo do que estaria se o governo Lula tivesse hostilizado a priori o governo de Morales.