Título: Fora do alcance do Fisco, Delaware seduz as empresas brasileiras
Autor: Adachi, Vanessa
Fonte: Valor Econômico, 20/06/2006, Especial, p. A12

Um verdadeiro paraíso na terra. O lugar chama-se Delaware e não se trata de algum destino turístico dos sonhos. O paraíso, no caso, é fiscal. Mas tampouco é uma ilha no meio do oceano, como as visadas Cayman ou Bahamas. Delaware está em terra bem firme e não poderia ter localização mais privilegiada e insuspeita: em pleno território americano. Mais precisamente, no eixo do poder político e econômico dos Estados Unidos, entre a capital Washington e Nova York.

Esse, que é um dos menores Estados americanos, tem sido o local escolhido para sediar inúmeras empresas de brasileiros. Há por lá subsidiárias americanas de companhias brasileiras, como a Petrobras. Mas, na maioria das vezes, o que se vê são companhias constituídas para investir de volta no Brasil.

É o caso de vários dos fundos da GP Investimentos, a maior gestora de private equity brasileira. É por meio de empresas constituídas em Delaware, como Emerging Markets Capital Investments LLC e Ralph Partners LLC, que a GP controla a concessionária de ferrovias América Latina Logística. Esse é apenas um dos exemplos.

O Banco Pactual também adota Delaware para fazer alguns de seus negócios de private equity. Em sociedade com a GP, constituiu no estado americano uma companhia para controlar a holding do setor elétrico Equatorial Energia, que foi batizada de Brasil Energia I LLC.

Esse modelo não se aplica apenas a investimentos de private equity. O Gávea, fundo hedge do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, também faz parte de suas operações no Brasil via Delaware.

Procurados, GP, Pactual e Gávea preferiram não comentar o tema. Mas, como eles, há centenas de outros investidores adotando a mesma fórmula.

A grande vantagem de Delaware é que, embora o Estado ofereça um tratamento fiscal diferenciado dentro dos Estados Unidos, que faz com que mereça ser conhecido como paraíso fiscal mesmo pelos americanos, ele não é considerado como tal pela Receita Federal brasileira.

O Fisco tem uma lista de localidades tidas como paraísos fiscais, da qual fazem parte Cayman e tantos outros, e que recebem um tratamento tributário diferenciado no Brasil, como forma de compensar os benefícios obtidos fora. Mas Delaware não consta da relação. O mesmo vale para o Uruguai.

Isso quer dizer que o investimento que vem de Delaware pode se beneficiar da Resolução 2689, do Banco Central, que isenta os estrangeiros de Imposto de Renda nas transações em bolsa e, mais recentemente, também com títulos públicos. Os paraísos fiscais tradicionais, que estão na lista da Receita, não podem gozar esse benefício e pagam o IR normal sobre o ganho de capital de 15%.

Além disso, qualquer outro rendimento obtido no país pelo investidor que está em paraíso fiscal é tributado em até 25%. No caso de Delaware, o imposto chega a uma alíquota máxima de 15% (é a alíquota aplicada a todos os países não-paraíso). "Tudo isso somado cria uma diferença muito relevante, que afeta diretamente o quanto vai sobrar no bolso do investidor ao final", diz a advogada Ana Cláudia Utumi, do escritório Tozzini Freire Advogados, que tem muitos clientes que se utilizam do paraíso americano em seus negócios.

O tipo de empresa mais comumente constituída em Delaware é a sociedade de responsabilidade limitada, ou LLC na sigla em inglês. Os veículos criados lá são o que os tributaristas chamam de "transparentes" para efeitos fiscais. Ou seja, não são taxados dentro dos Estados Unidos. Quem é tributado é o investidor que aplica por meio da empresa e essa tributação ocorre onde quer que ele seja residente.

Numa situação normal, haveria tributação em três esferas: no Brasil, no veículo de investimento e também na pessoa física do investidor. No tipo de modelo que se utiliza de Delaware, há isenção ou tributação reduzida no Brasil, o veículo de investimento também está isento e só acontece a taxação na figura do investidor. Ou seja, a taxação ocorre em uma única esfera. Às vezes, simplesmente não ocorre, supondo os casos em que o dinheiro depositado no exterior não é declarado ao Fisco do país de residência.

"É a mesma situação de se constituir uma empresa no Uruguai, que também está ausente da lista de paraísos da Receita. Mas entre Delaware e Uruguai, os investidores têm preferido o primeiro por questões de imagem", diz Andréa Bazzo, advogada sócia do Mattos Filho.

O volume crescente de operações realizadas via Delaware não tem passado despercebido pelo Fisco, diz o delegado de Assuntos Internacionais da Receita, Francisco Labriola. "É corriqueiro encontrarmos estruturas montadas em Delaware durante as fiscalizações."

No entanto, a posição da Receita é de mera observadora, pois não há o que fazer. "Trata-se de uma área cinzenta da legislação. É claro que não haveria interesse em permitir toda essa vantagem fiscal, mas a lei não proíbe", observa Henrique Maluf, chefe da divisão de tributação da delegacia.

"A lista de paraísos brasileira é fraca. Quem tem dinheiro e sabe como fazer, contorna facilmente a legislação", diz Celso Grisi, advogado em Nova York do escritório Fox, Horan & Camerini. De acordo com ele, países com legislação mais moderna referente a paraísos fiscais não distinguem países e sim regimes fiscais. Assim, dentro de um mesmo país, regimes fiscais distintos podem receber tributações também diferentes. Maluf, da Receita, é da mesma opinião. "Ainda nos falta essa modernidade."

De acordo com Labriola, a tendência é que, no médio prazo, essa brecha existente hoje seja fechada. "Temos dado subsídios à Receita para que se altere a legislação no futuro."

Um grande escritório de advocacia, com muitos clientes em Delaware, foi procurado para a reportagem e preferiu não participar. A explicação foi que facilmente a Receita Federal poderia fechar a brecha. Mas não deve ser algo tão simples assim pois, dizem alguns especialistas, incluir uma localidade americana numa lista de paraísos fiscais envolve questões diplomáticas delicadas.

O advogado Celso Grisi diz que a incorporação em Delaware já está ficando bastante visada. Por isso diz ele, outros paraísos em terra firme têm sido recomendados para cumprir o mesmo papel. As preferências têm recaído sobre Reino Unido e Holanda, que oferecem possibilidades de estrutura tributária semelhante à de Delaware.