Título: Inflação dos próximos anos: desafio dos preços relativos
Autor: Megale ,Caio
Fonte: Valor Econômico, 01/03/2012, Opinião, p. A10

A inflação medida pelo IPCA terminou 2011 em 6,5% em 2011, exatamente no limite superior do intervalo de tolerância para a meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Com isso, a inflação ao consumidor ficou pelo oitavo ano consecutivo dentro da meta.

A estabilidade recente do IPCA vem sendo construída, no entanto, sobre uma tendência divergente entre seus componentes. Nos modelos econômicos, chamamos de estado de crescimento equilibrado ("steady state", no termo usual em inglês) aquele em que todas as variáveis crescem a taxas parecidas. No entanto, ao longo dos últimos anos a inflação de bens não comercializáveis internacionalmente, como serviços, foi sistematicamente maior do que a de comercializáveis, como bens de consumo duráveis e bens de capital.

De fato, nos oito anos de metas cumpridas, a inflação acumulada de serviços foi de 67%, contra 42% dos comercializáveis. Este movimento persistirá?

Os preços relativos entre comercializáveis e serviços estiveram em constante mudança no Brasil desde o Plano Real (como mostra o gráfico). Nos primeiros anos houve uma pressão de demanda interna, em meio a uma taxa de câmbio administrada. Com isso, os serviços e outros produtos ofertados apenas domesticamente ficaram caros (devido aos custos de produção e a impossibilidade de importá-los) em comparação aos bens internacionais - cujos preços são contidos pela taxa de câmbio valorizada. A inflação de serviços foi, desta forma, muito maior. Esta mudança de preços relativos acabou produzindo um déficit em conta corrente que superou os 4% do PIB, culminando com a crise de 1999 e a mudança do regime cambial.

A partir de 1999 a tendência se inverteu, resultado de subsequentes desvalorizações do câmbio. A inflação de comercializáveis correu sistematicamente acima dos serviços por quatro anos e o câmbio real ficou mais depreciado. Os preços elevados dos bens comercializáveis acabaram contaminando os salários, levando o IPCA como um todo para cima. Entre 2001 e 2002 a inflação anual média foi de 10%.

Precisávamos de um freio de arrumação. Os juros subiram a 26,5% ao ano, o superávit primário a 4,25% do PIB. O crescimento foi a zero. O câmbio depreciado fez efeito, e passamos a gerar superávits externos, em parte ajudado pelo crescimento mundial mais forte e pela maior presença da China no comércio mundial.

O ingresso de capitais estrangeiros acelerou e o câmbio real passou a se apreciar. Voltamos a ter inflação maior de serviços e outros bens não expostos à competição externa. A tendência foi exacerbada pela expansão da nova classe média e pelo aumento expressivo da demanda interna a partir de 2004, e deve continuar em 2012: o Itaú Unibanco, por exemplo, o projeta 9,1% de inflação de serviços para o ano, contra apenas 3,3% de bens industrializados.

É possível manter esta tendência para os próximos anos? Em outras palavras, é possível manter o modelo de demanda interna forte e inflação em geral controlada, mas resultado de inflação de bens comercializáveis baixa compensando a inflação mais alta dos serviços? Ou teremos uma reversão, como nos ciclos anteriores?

Para que a tendência atual se mantenha, temos que aceitar um câmbio real cada vez mais valorizado, e déficit em conta corrente crescente para dar vazão ao excesso de demanda doméstica. É uma estratégia arriscada. Não apenas pelo efeito de competitividade que o câmbio apreciado pode ter sobre nossos produtos, como também pela possibilidade do resto do mundo não querer mais financiar o déficit externo brasileiro se este se elevar acima de certo patamar - digamos 4,5% ou 5% do Produto Interno Bruto (PIB).

Para reverter a tendência é preciso criar as condições adequadas. O esforço do governo em manter a taxa nominal de câmbio mais depreciada vai nesta direção. Mas ela não basta, e pode ser igualmente perigosa: pode acabar gerando um aumento acentuado da inflação de comercializáveis, ao invés da redução da inflação dos serviços. Isso nos levaria a uma inflação no geral maior (como ocorreu em 2001/2002).

Para uma reversão saudável dos preços relativos, precisamos de um ajuste no crescimento do consumo interno, que contenha a inflação de demanda ao longo do tempo. A intensidade do ajuste não precisa ser como em 1999 ou 2003, momentos em que o país estava em crise econômica. Mas para acomodarmos uma relação mais equilibrada entre preços internos e externos - e, portanto, gerarmos uma taxa de câmbio mais depreciada - será preciso um ritmo de crescimento mais comedido da absorção doméstica.

Existem dois caminhos para chegar lá. A desaceleração pode vir da demanda privada, o que implicaria no aumento da poupança das famílias. Alternativamente, a moderação pode vir de um ajuste fiscal mais permanente, promovido por reformas estruturais, que limite os gastos do setor público. Este parece o caminho mais adequado, pois abre espaço para uma relação mais saudável entre serviços e comercializáveis, sem abrirmos mão de consumo doméstico ou do controle da inflação.

Em suma, houve nos últimos oito anos uma tendência de mudança do preço relativo no Brasil importante para acomodar o crescimento forte da demanda interna sob uma inflação controlada. Mas os efeitos desta estratégia sobre a competitividade internacional dos nossos produtos começam a ficar claros. Para os próximos anos, manter a inflação sob controle pode significar escolher entre um câmbio real ainda mais apreciado ou uma moderação persistente nas taxas de crescimento dos gastos públicos.

Caio Megale é mestre em economia pela PUC-RJ, é economista do Itau-Unibanco.