Título: Renda vai definir o tamanho da classe média
Autor: Malta ,Cynthia
Fonte: Valor Econômico, 05/03/2012, Especial, p. A12

O consumo das famílias, que vem sustentando a expansão da economia, tem a classe média como principal alavanca. Mas ninguém sabe ao certo o real tamanho dessa massa de brasileiros. Dependendo da fonte consultada, o principal grupo consumidor no país equivale a 43% ou até 55% da população - 82 milhões de pessoas ou 104,5 milhões. Essa discrepância não é nada trivial, nem para empresas que vendem produtos ou serviços, nem para governos, que dependem dela para serem eleitos.

Na falta de uma classificação oficial, o governo federal, por meio da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), decidiu, em meados do ano passado, iniciar discussões sobre a classe média. O grupo técnico, que inclui economistas, professores e representantes do governo federal, já realizou dois encontros, no fim do ano passado e em janeiro. Nessas reuniões ficou decidido que o caminho para saber quantos brasileiros estão na classe média será o nível de renda per capita. Falta decidir se vai se optar pela renda per capita individual ou pela renda familiar per capita (a renda da família é dividida pelo número de seus integrantes).

A discussão - sempre difícil - sobre outros critérios de classificação socioeconômica, como nível de educação ou acesso a água e esgoto tratados, já foi encerrada pelos técnicos: eles não serão usados. A opção foi por um modelo mais simples, que considera apenas o nível de renda. Portanto, não se deve esperar das discussões na SAE o surgimento de um modelo que mostre uma classe social, mas, sim, uma classe de renda.

"Classe social versus classe de renda é assunto polêmico", diz a diretora da subsecretaria de Ações Estratégicas, Diana Grosner, que está coordenando os trabalhos na SAE. "A Marilena [Chauí, filósofa e professora da USP] sugeriu que deveríamos optar pelo critério da renda", diz a diretora. "Entendemos que a renda é o melhor jeito de classificar. É simples, de fácil compreensão e pode ser adotado por governo federal, Estados e municípios."

O grupo técnico da SAE ainda não definiu qual é a faixa de renda que coloca um brasileiro na classe média. Estudo recente dos professores Wagner Kamakura, da Duke University, e José Afonso Mazzon, da USP, mostra que a renda per capita de um brasileiro da classe média pode variar de R$ 398 a R$ 863. Para a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), a renda média de uma família de classe média vai de R$ 1.024 a R$ 1.541.

Usando uma amostra de 104 mil lares e dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), Mazzon e Kamakura usaram 36 critérios - desde o número de aparelhos de TV em cores, computadores pessoais e automóveis, até nível de educação e ocupação do chefe da casa, passando pelo número de empregados domésticos. Critérios como acesso a esgoto, água tratada tratada e ruas pavimentadas também foram considerados.

A SAE requisitou o estudo, mas a avaliação inicial é que se trata de um modelo sofisticado. Os professores argumentam que o modelo é simples. Para se classificar um cidadão, baste que ele responda a 15 perguntas (e não a todas 36 questões usadas no estudo).

Na SAE, para saber qual é o nível de renda que vai definir um cidadão de classe média, o grupo de técnicos está estudando "critérios de corte", como quantidade de calorias consumidas e quais eletrodomésticos há dentro de casa. Funcionaria da seguinte maneira: apura-se quais bens duráveis o cidadão possui. Depois, vê-se qual é a sua renda. A partir daí, divide-se a população. "Quais os cortes mais convincentes? Ainda não sabemos. Estamos fazendo simulações", afirma Diana.

A base de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tem sido usada pela secretaria para fazer simulações. A Pnad foi escolhida por ter uma série histórica mais longa, o que permite testar hipóteses para trás, na escala do tempo.

As simulações são importantes, pois pode dar indicações, por exemplo, de como um cidadão de classe média está mais ou menos vulnerável a voltar para o patamar de baixa renda ou tem potencial para subir de patamar.

Sobre a pobreza, a diretora da SAE diz que já é assunto discutida no país há mais tempo - o Bolsa Família, programa de apoio a famílias de baixa renda, foi adotado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva, mas teve seu embrião, o Bolsa Escola, criado pelo antecessor Fernando Henrique Cardoso, em meados dos anos 90. Mas estudar a classe média é algo novo no país. De 2003 a 2009, estima-se que cerca de 20,5 milhões de pessoas tenham migrado da base da pirâmide populacional para o meio dela.

Os debates na SAE, cujo relatório final deve ser terminado em maio, quando será entregue à presidente Dilma Rousseff e a seu ministério, contemplam uma segunda fase, que ainda não está completamente desenhada. Depois de definido qual é o real tamanho da classe média, o objetivo é elaborar e aplicar políticas públicas voltadas para ela.

Para isso, pondera Diana, será preciso sofisticar a discussão atualmente feita na secretaria. Ter apenas a renda como critério de classificação será insuficiente. "Até que ponto esse nova classe média é homogênea? Ela acredita nas mesmas coisas? Imaginamos que seja composta de grupos diferentes", afirma a diretora. "Para aplicar políticas públicas, é necessário ver essas divisões dentro da classe média."

André Portela, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), participa do grupo técnico coordenado pela SAE. Em sua visão, adotar apenas a renda como critério de classificação limita a abrangência do trabalho, "mas pode servir para uma primeira aproximação". Ele acredita que os técnicos acabarão optando pela renda familiar per capita, mas mesmo depois disso decidido, há nuances a serem avaliadas. "Se a classificação quiser refletir a necessidade de consumo, o adulto [da família] teria que ter um peso maior. Esses detalhes ainda serão discutidos", diz ele.

A renda familiar per capita também é vista como medida ideal por um membro do grupo técnico, que prefere não ter seu nome revelado. Mas, em vez de compilar dados sobre consumo de calorias ou posse de bens duráveis para chegar à informação sobre a renda, ele defende que seja perguntado ao cidadão qual é a renda dele. Essa resposta já existe no Censo, na Pnad e na POF, diz a fonte. No grupo técnico, foi levantada a hipótese de o cidadão mentir sobre a renda, quando perguntado pelos pesquisadores. "Mas não acreditar na resposta do entrevistado, põe em dúvida todas as pesquisas", afirma ele.

O modelo que tende a ser adotado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, de medida absoluta, é diferente do sistema da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A entidade internacional usa a renda familiar per capita, mas determina um valor relativo em torno da renda mediana - 20% da população acima da mediana e 20% abaixo da mediana formariam, por exemplo, a classe média.

"O tamanho desse grupo é sempre o mesmo. No Brasil, queremos saber o tamanho da classe média, saber por que houve a ascensão. Na OCDE, a discussão sobre a distribuição de renda já foi feita. É algo estável", avalia Portela, da FGV.

Para ele, o fato de a base de dados escolhida no trabalho da secretaria ser a Pnad tem uma desvantagem: sabe-se apenas a renda do trabalho (o salário), mas não a renda proveniente de outras fontes, como receita de aluguel ou o valor investido na caderneta de poupança. Mas o professor concorda com a diretora da SAE sobre as vantagens: a Pnad oferece uma série história longa, com dados anuais e com a possibilidade futura de atualizações trimestrais.

Jefferson Mariano, analista socioeconômico do IBGE, não participa do grupo técnico da SAE, mas acompanha o assunto com atenção e tem um grupo de estudos que discute mobilidade social. Para ele, o modelo que tende a ser adotado na SAE deverá definir uma classe de renda, mas não uma classe social.

Mariano dá um exemplo: "A renda do cidadão aumentou, mas ele continua morando numa casa que não tem esgoto tratado, nem rua pavimentada. Ele mudou de classe?", pergunta. Para ele, não. Adotar a renda como critério para dividir a população e saber qual é o tamanho da classe média no Brasil, diz Mariano, "é algo insuficiente". Mas ele entende que o "como fazer" é tema complexo, é um desafio.

O IBGE, que sempre evitou fazer classificações sociais da população brasileira, está reformulando suas pesquisas socioeconômicas. Elas estão deixando de ser feitas apenas nas regiões metropolitanas, a abrangência está crescendo, lembra Mariano, que elogia a iniciativa da SAE: "Esse debate é um começo, é positivo".