Título: Em São Carlos, reincidência é nove vezes mais baixa que nas fundações
Autor: Agostine, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 07/07/2006, Especial, p. A14

As lembranças que Raul, de 17 anos, tem dos últimos dois anos são as piores. "Vivia em um inferno", recorda. Preso por assalto à mão armada aos 14 anos, ele foi encaminhado à Febem na capital paulista, distante 236 quilômetros de sua família, e cumpriu parte da condenação em três unidades da fundação. Do "inferno", foi para uma chácara com pomar, animais e portão aberto para cumprir o restante da pena de dois anos e meio, em São Carlos, interior paulista.

A transferência, a pedido do pai de Raul, foi intermediada pelo Núcleo de Atendimento Integrado (NAI). Na cidade, o menino tem uma rotina que era impensável na Febem. Todos os dias, vai a pé à escola, ajuda na horta, tem atividades artísticas, esportes e pode ouvir música e assistir TV no sofá. Nos fins de semana, visita os pais.

Raul passou nove meses em duas unidades da capital. Outros oito meses foram cumpridos em Araraquara, também no interior. Dentro da Febem, ele freqüentava a escola. Mas o tempo que passou na fundação ainda o amedronta. Quando foi preso, aos 14 anos, Raul começou a usar maconha e cocaína. "Lá na Febem era o pior inferno. Funcionário partia para briga por qualquer coisa. Eles batem e você não pode levantar a cabeça. Tem que pedir licença para tudo. Aquilo não é vida, é escravidão."

O medo de ser internado na fundação domina os menores que estão em semi-liberdade. "Lá o 'bagulho é louco'", acredita Julio César, de 17 anos. A opção por medida sócioeducativa depende do juiz da Infância e Juventude. Quando o juiz de São Carlos, João Baptista Galhardo Jr., pegou o relatório de Julio César, viu que o rapaz, internado cinco vezes em clínicas de tratamento, tinha problemas na família. Os roubos e furtos eram para comprar drogas.

"Quando o delito cometido é mais leve, ele sofre uma advertência. Se não for trabalhado, piora. Tem que olhar para o caso, não para o ato infracional", analisa Galhardo. "Se houver uma boa prevenção, uma boa liberdade assistida, não vai se falar mais em novas unidades da Febem. A internação é importante, mas não se pode só pensar em internar mais".

O portão é baixo e fica aberto durante todo o dia, sem policiais ou seguranças armados. Raul e Julio César fugiram assim que chegaram lá. "Estava há um tempão preso, queria sentir a liberdade", recorda Raul, depois da passagem pela Febem. "Não agüentei e precisava fumar alguma coisa. Fiquei perambulando por horas, depois voltei, com medo de aumentar minha pena", explica Julio.

Alguns vizinhos visitam a horta dos jovens e compram verduras, como a moradora Josefa da Silva, "Ficamos com medo no começo, mas os meninos não mexem com ninguém". Vizinha da frente de Josefa, Rita de Cássia da Silva prefere distância. "Medo, eu não tenho, mas nunca fui lá comprar nada. Há dois meses teve assalto no bairro e o pessoal falou que foram eles".

A chácara de semi-liberdade é mantida pelo núcleo integrado e pode atender de 10 a 15 jovens. O terreno foi doado por um empresário e a Febem custeia a alimentação. As outras contas são pagas por entidades, como a dos Salesianos.

No primeiro ano de funcionamento do núcleo, 156 jovens foram custodiados. Quatro anos depois, em 2005, foram 90. Em São Carlos, com 215 mil habitantes, o índice de reincidência registrado pelo núcleo contrasta com o da Febem: 2% frente aos 19% da fundação. "Toda vez que muda o presidente da Febem, eles nos visitam e se entusiasmam, mas não desenvolvem o projeto. Sempre atuam em contrapartida", reclama o prefeito de São Carlos, Newton Lima.

A reincidência é baixa, mas marcante. Everton, de 17 anos, passou oito vezes pelo núcleo. Condenado a dois anos e meio por tráfico de drogas, ele relembra os assaltos. "Quero sair, mudar minha vida, ter minha família", disse, convicto. Nunca mais voltará ao mundo do crime? "Só se for 'fita' boa. Se for uns R$ 20 mil, R$ 30 mil, tudo combinado e certo, é o esquema".

Na triagem, passam mais de mil jovens por ano. Além dos levados pela polícia, muitas famílias encaminham filhos com problemas. "É preciso prevenir para evitar a prisão", afirma o padre Agnaldo Soares, coordenador do NAI e secretário da Juventude de São Carlos.

Representantes de mais de 50 municípios já visitaram o núcleo de São Carlos. Ribeirão Preto e Americana adotaram o modelo. "Toda cidade tem condição de fazer. Não precisa de uma obra faraônica, mas sim de uma estrutura simples, com integração entre os poderes Executivo, Judiciário e o Ministério Público", diz Galhardo.

Em Ribeirão Preto, segunda cidade paulista que mais interna jovens na Febem, o núcleo integrado foi feito por iniciativa do Judiciário há um ano, para tentar reverter o quadro de 175 jovens internados. "O núcleo não ameniza a medida, mas agiliza o atendimento, os procedimentos e facilita o encaminhamento a medidas em meio aberto", explica a coordenadora da Rede Social do núcleo, Maria Carolina Moraes Lellis. Em 2005, foram atendidos 222 jovens. Dos 188 detidos por atos graves, 133 foram para Febem, 24 tiveram penas mais leves, como liberdade assistida ou prestação de serviço à comunidade, e 25 jovens foram acompanhados por uma equipe do núcleo durante três meses.

Se dependesse do juiz da Criança e da Juventude de Ribeirão Preto, Paulo Gentile, a Febem não construiria mais nenhuma unidade. "A idéia do governo é construir mini-presídios. As unidades da Febem de hoje são cadeias para adolescentes. Só se pensa em prédio e não em espaço para educação", critica Gentile. "Quanto maior o número de vagas, maior a demanda".

Na cidade de Americana, com 201 mil habitantes, o projeto não tem o mesmo engajamento de São Carlos ou de Ribeirão Preto. As celas se assemelham a de penitenciárias, pequenas, com muitas grades e trancas e grande preocupação com a segurança. Em pouco mais de um ano de existência, as internações diminuíram em 20%, segundo o diretor do núcleo, Benedito Vanderlei da Silva.

Com medidas simples, os três municípios adequaram-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente e o tratamento humanizado é uma das formas eficazes no combate à reincidência. "A hora em que o estatuto, que já tem 16 anos, for mais respeitado, vai influenciar diretamente no PCC (Primeiro Comando da Capital). Acabar com o PCC é respeitar o Estatuto", defende o juiz de São Carlos, Galhardo Jr. (CA)