Título: Municípios buscam alternativa à Febem
Autor: Agostine, Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 07/07/2006, Especial, p. A14

O padre Agnaldo Soares Lima e o juiz da Criança e da Juventude João Baptista Galhardo visitavam uma unidade da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), em São Paulo, quando viram uma das mais sangrentas rebeliões da história da fundação. No dia 24 de outubro de 1999, o complexo Imigrantes foi tomado por um motim. Jovens mataram quatro internos com porretes, serrotes e martelos, jogaram cinco crianças e três monitores dos telhados, torturaram e deceparam. O Unicef defendeu a extinção da Febem. A repercussão negativa obrigou a desativação do complexo.

No mesmo dia, começou a ser desenvolvido um projeto alternativo à internação dos jovens infratores e à transferência de menores do interior para a capital. O padre e o juiz voltaram para São Carlos, a 236 quilômetros do complexo Imigrantes, com a idéia de criar uma unidade de semi-liberdade e um lugar para receber jovens levados pela polícia, fazer triagem e evitar a detenção. A idéia transformou-se no Núcleo de Atendimento Integrado (NAI).

Desde 2001, os menores infratores de São Carlos são levados pela polícia ao núcleo e passam por entrevistas. Na hora, um policial faz o boletim de ocorrências e o jovem fala com assistente social e psicólogo sobre sua família e condição financeira. Até a audiência com o juiz, às sextas-feiras, fica em uma cela e é acompanhado pela equipe que o recebeu. Os adolescentes com delitos mais graves, como roubo e tráfico, vão para uma chácara, onde cumprem medida de semi-liberdade. A Febem não foi descartada e para lá vão casos como os de homicídio.

A solução proposta pelo núcleo de atendimento está prevista há 16 anos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas somente há pouco mais de seis anos começou a sair do papel no Estado. Na época, o governo aprovou a idéia do núcleo e prometeu construir 14 unidades. Hoje apenas três existem, em São Carlos, Americana e Ribeirão Preto, por iniciativa dos municípios, Judiciário e entidades sociais.

Em São Carlos, o padre Agnaldo e o juiz Galhardo tiveram apoio do Executivo. "O projeto é um contraponto à Febem e aportamos recursos municipais. O Estado é parceiro, mas não entusiasmado. Trata como uma experiência a mais, não é prioridade; para nós é a menina dos olhos", disse o prefeito, Newton Lima (PT). Em Ribeirão Preto, o Judiciário engajou-se e pediu ajuda ao prefeito Welson Gasparini (PSDB). Em Americana, gerida por Erich Hetzl Jr. (PDT), funciona há um ano e meio. "Este não é projeto da Febem, independe de nossa vontade", diz a presidente Berenice Giannella. "As cidades deveriam assumir o quanto antes o compromisso de cuidar dos menores. É melhor para o jovem ficar perto da família".

Paralelamente aos seis anos de funcionamento do primeiro núcleo, a Febem registrou 167 rebeliões, 606 fugas e 4152 fugitivos. Sucesso nas três cidades, o projeto não resolveria por completo os problemas dos menores infratores em São Paulo. Para o presidente do Movimento Nacional de Direitos Humanos e membro da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da OAB, Ariel de Castro Alves, é preciso reformular a Febem. "Tem que se extinguir esse modelo e priorizar medidas educativas em meio aberto".

O Estado de São Paulo é o campeão de internações de jovens. Com mais de 50% de todos os menores infratores do país, o número de prisões não pára de crescer. Nos últimos dez anos, saltou de 2.125 para 6.372. A periculosidade dos atos cometidos não corresponde à pena. "Há uma cultura no Judiciário de determinar internações", diz Berenice. "O estatuto determina que ela seja feita só em último caso, nas infrações mais graves como roubo e homicídio, mas ela é aplicada até em tráfico de drogas, furto".

Segundo a Febem, a infração mais comum dos jovens é o assalto, cometido por 52,2%. O tráfico de drogas vem em seguida (15,9%). Descumprimento de pena, 5,4%; latrocínio, 3,1%; homicídio doloso, 8,6% e culposo, 0,6%. Pelo país, a estatística dos crimes é diferente. O Rio, por exemplo, lidera no número de menores presos por tráfico de drogas (44%), infração que dobrou de freqüência desde 1999 (19%). Tem 6% dos internos do país e o menor registro de homicídios (8%). Nesse tipo infração o Amapá lidera (44%).

Promotores e juízes apontam que os tratamentos mais eficazes são as medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade), em semi-liberdade e em unidades de internação pequenas. Em São Paulo, são 14.800 jovens cumprindo pena em meio aberto, mas quase 17 vezes mais jovens internados do que em semi-liberdade.

Em março de 2005, em meio a outra onda de rebeliões, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) prometeu reformular a Febem e construir 41 unidades para abrigar 40 jovens cada. As obras estão atrasadas. "Muitos municípios não querem receber unidades", justifica Berenice. Promotores e juízes contestam o projeto arquitetônico licitado, sem condições adequadas para receber os jovens. As obras estavam previstas para 150 dias, mas um ano e três meses depois, três unidades foram inauguradas. Mesmo que sejam entregues outras 25 no segundo semestre, conforme divulgado pela Febem, a meta não será cumprida.